Evangélicos e “endeusamento” ou “negacionismo” da ciência

O pedido de oração Pela Pacificação da Nação em Meio à Pandemia do Coalização pelo Evangelho gerou certa polêmica na internet por causa da expressão “endeusamento da ciência”.[1] No mundo de manchetes polêmicas, basta tirar a expressão do seu contexto para condenar “líderes evangélicos” de “negacionistas”. Quero tecer breves comentários sobre “negacionismo” e “endeusamento” da ciência, mostrando que nenhum desses extremos se condiz com a cosmovisão cristã.

“Negacionismo” da ciência

1) Enraizada na cosmovisão cristã está a base para o estudo da Criação (ou Natureza, para muitos), pois afirma que ela é real (e deve ser considerada — diferente de interpretações do hinduísmo), não é sagrada (e pode ser dissecada sem sacrilégio — como no animismo) e é boa (e é aprazível estudá-la — diferente do gnosticismo). Tanto é que muitos dos avanços da ciência moderna se deram em berços cristãos por pesquisadores teístas.

2) Sustentado pelo ensino bíblico está a noção de que aquilo que chamamos de “leis da natureza” foram criadas e são sustentas por Deus, por sua Palavra, e podem ser compreendidas.

“Assim diz o Senhor: Se a minha aliança com o dia e com a noite não permanecer, e eu não mantiver as leis fixas dos céus e da terra, também rejeitarei a descendência de Jacó e de Davi […]” (Jr 33:25–26, ênfase acrescida; cf. Sl 147.15-18; Hb 1.3).

Foram estabelecidas por um Deus que se revela, que se faz conhecível. Assim, sua Palavra que governa a Criação também é conhecível. Como diria Johannes Kepler:

“Essas leis encontram-se ao alcance da mente humana. Deus queria que as reconhecêssemos ao criar-nos segundo a sua imagem, de modo a que pudéssemos partilhar dos seus pensamentos” (apud. Carta para Johannes George Herwart von Hohenburg)

3) Ainda mais, integrante à sabedoria bíblica está o saber multidisciplinar que passa pelo conhecimento do livro da Criação e da Revelação, ambos escritos pelo mesmo Autor.

Adão foi “o primeiro cientista”, sendo chamado a nomear os animais (Gn 2.9). Nessa taxonomia, temos a união de conhecimento e domínio, ou seja, o homem estabelece seu domínio beneficente sobre a Criação passando pelo seu conhecimento dela.

Salomão apresenta outro caso interessante. 1 Reis 4.29–34 afirma sobre como a sabedoria teorreferente desse rei era internacionalmente reconhecida. Para muitos incrédulos — e até mesmo alguns crentes —, essa sabedoria só poderia significar o saber de textos sagrados, mas não é o que o texto bíblico apresenta. A sabedoria bíblica descrita incluía entendimento de ciências comportamentais, artísticas e biológicas.

4) Fruto das concepções bíblicas das doutrinas da “graça comum” e da “depravação total” está uma base sólida para interação com cientistas não cristãos. A graça comum nos ensina que é o Senhor que dá conhecimento “científico” aos homens, até mesmo para os mais impiedosos (cf. os filhos do perverso Lameque, em Gênesis 4.19-22). Isaías 28.23-29, após descrever diversas técnicas agrícolas conhecida pelos homens, afirma: “Também isso procede do Senhor dos Exércitos”.

Por outro lado, a depravação total nos ensina que todas as partes do ser humano estão contaminadas pelo pecado, inclusive seu intelecto — seja do teólogo, seja do cientista. A Palavra de Deus nos livros da Criação e da Revelação são inerrantes; nós, não. Nas palavras de Vern Poythress:

“Assim, quando encontramos discrepâncias entre a Bíblia e a ciência, precisamos descobrir aonde perdemos o fio da meada. Alguém, em algum lugar, interpretou mal as coisas – seja interpretando mal a Escritura, seja interpretando mal o mundo dos estudos científicos, seja interpretando mal os dois!” (POYTHRESS, Vern S. Redeeming science: A God-centered approach. Wheaton, Illinois: Crossway, 2006. p. 43).

Há ainda muito a se falar sobre a correta equalização e clareza do livro da Revelação sobre o da Criação, mas, por hora, isso basta para mostrar que, em categorias bíblicas, negar de forma absoluta qualquer estudo científico é ser o oposto de sábio.

“Endeusamento” da ciência

1) Basilar ao entendimento cristão está que “só o Senhor é Deus”. Assim, nenhum outro ser ou objeto da Criação deve ser adorado — sejam políticos e ideólogos, cientistas e “a comunidade científica” ou pastores e teólogos. O cristão pode ouvir e dialogar com todos, mas se curva a nenhum.

2) Como afirmado anteriormente, a doutrina da depravação total (bem como do pecado original) e até mesmo o bom senso nos ensina que por trás “da ciência” (assim como “da teologia”) estão homens falhos com pressupostos ideológicos e políticos, os quais podem, sim, influenciar suas publicações.

Previsões científicas de órgãos respeitadíssimos erram, como se viu recentemente. Consensos científicos se mostram incompletos, como já visto na História. Além disso, já se provou haver influência política e ideológica em algumas pesquisas e publicações. Por outro lado, é necessário distinguir o estudo científico da interpretação desses dados e do uso político desses estudos em ações governamentais.

Afirmar isenção absoluta, inerrância e inquestionabilidade (seja cientista, político, teólogo ou pastor) é, sim, uma forma de endeusamento, pois somente Deus é a Verdade.

3) Além disso, já é problemático falarmos em “ciência” como se fosse um bloco monolítico absoluto. É melhor falar em “ciências”. Cada área do saber tem metodologias distintas, que podem ser mais ou menos subjetivas. E dentro de cada campo de pesquisa podem, inclusive, existir propostas divergentes.

Para os cientistas, as disputas e posições contrárias são um fato comum. Na própria raiz da ciência está a correção progressiva de conhecimentos anteriores. Colocar “a ciência” como impassível de erros é uma contradição da proposta e da metodologia científicas.

4) Entretanto, o uso genérico da expressão “ciência” (como se fosse uma entidade transcendente), muitas vezes, serve interesses ideológicos. Para o cidadão comum, não. Ao ouvir “as pesquisas dizem”, “a ciência diz” ou “os cientistas dizem”, já assumem ser verdade absoluta. E isso é, sim, um “endeusamento da ciência”. A reclamação de que em um país com altos índices de analfabetismo é ridículo falar sobre “endeusamento da ciência” deve considerar que quiçá seja justamente o contrário.

Ademais, as generalizações “os cristãos”, “o cristianismo” e “os evangélicos” também podem servir interesses ideológicos que tentam desmoralizar todos por causa de parte. Há alas dentro do Cristianismo avessas ao estudo científico? Certamente. Há alas dentro do Cristianismo que tornam “a Ciência” um ídolo? Certamente. Tem um espectro enorme entre os dois extremos.

Novamente, há muito para se falar, porém faz-se necessário deixar claro que é possível estabelecer ao mesmo tempo um diálogo com “a ciência” e criticar o “endeusamento da ciência”. Os que não acham isso possível, já endeusaram “a ciência”.


[1] Neste borbulhante caldo político do nosso país, até um pedido de oração por pacificação se torna objeto justamente do contrário. É, no mínimo, falta de leitura caridosa taxar tais líderes evangélicos de “negacionistas” quando há doutores e mestres entre eles e um pedido claro de oração “pelos pesquisadores, para que desenvolvam remédios e vacina eficientes”.