Um blog do Ministério Fiel
Perdão e abuso: o problema do perdão (Parte 1)
Uma das perguntas pastorais mais difíceis que ouvimos em uma comunidade carente é: Devo perdoar meu agressor ou abusadores? Essa questão vem com muita mágoa do passado e, portanto, deve ser tratada com grande sensibilidade pastoral. Não podemos dar respostas banais ou simplistas. Além disso, teologicamente, não há respostas simples de “sim ou não” quando se trata de perdão. Como escreve Westcott, “nada, superficialmente, parece mais simples do que o perdão, ao passo que nada, se olharmos profundamente, é mais misterioso ou mais difícil”.
Minha esperança, então, nesta série de artigos, é examinar a questão do perdão, especificamente no que se refere a casos de abuso. Em particular, espero equipar os pastores para lidar com esse assunto complexo. Também espero que meus pensamentos, aqui, sejam de alguma utilidade para as vítimas de abuso que estão tentando lutar teologicamente com o perdão.
Tenho plena consciência de que este é um assunto profundamente delicado, por isso quero avisá-lo, desde o início, que alguma linguagem técnica será utilizada. Meu objetivo ao fazer isso não é, de forma alguma, diminuir o sofrimento real e de longo prazo que o abuso causa. Em vez disso, pretendo mergulhar profundamente em certas áreas relativas ao pecado, perdão e reconciliação, tudo na esperança de que as vítimas – e os abusadores – possam encontrar esperança e refúgio no Senhor Jesus Cristo.
O problema do perdão
Geralmente, há duas respostas dadas pelos cristãos à questão de saber se uma vítima de abuso deve perdoar seu agressor. Em primeiro lugar, alguns argumentariam que os cristãos, não importa o que tenham passado, devem perdoar as feridas do passado quando vêm a Cristo. Eles citam vários exemplos bíblicos para apoiar isso, como José perdoando seus irmãos após ser vendido como escravo (Gn 39), ou a parábola de Jesus sobre o credor incompassivo (Mt 18.21-35), ou Jesus orando sobre a cruz, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23.24). Em geral, essas pessoas tendem a ver o perdão como incondicional.
Em segundo lugar, há outros que argumentariam que a vítima só tem que perdoar seu agressor se esse agressor vier até ela em arrependimento. Eles argumentam que Deus só perdoa pecadores arrependidos (Lc 13.3) e, portanto, o mesmo é verdade para relacionamentos entre pessoas pecadoras. Eles veem o perdão como condicional. Então, qual resposta é bíblica?
Bem, na verdade existem problemas em ambos os lados. Pessoas que veem o perdão como incondicional tendem a esquecer que os textos que frequentemente falam sobre o perdão não são tão diretos quanto parecem. O ato de perdão de José só vem depois que seus irmãos mostram um coração contrito e arrependido. Além disso, ele realmente os perdoa anos depois de suas queixas contra ele. Jesus ensina muito sobre o perdão, mas também o conecta ao arrependimento (por exemplo, Lucas 17.4). E, na cruz, Jesus ora “perdoa-lhes”, mas a pergunta espinhosa é: Por que ele não os perdoou? Ele havia feito isso antes (Mc 2.1-12), então por que não agora? Por que Jesus pede ao Pai que os perdoe? E então temos que lembrar que o próprio Deus simplesmente não perdoa a todos. Somente aqueles que se arrependeram de seus pecados e confiaram na vida, morte e ressurreição perfeitas de Cristo em seu nome têm seus pecados apagados e perdoados.
Para aqueles que veem o perdão como condicional, acho que a maior coisa que esquecem é que a oferta de perdão de Deus precede nosso arrependimento. Em outras palavras, Deus não olha para o coração de um crente e pensa: essa pessoa está super arrependida e, portanto, eu vou perdoá-la. Não, toda a doutrina da eleição incondicional nos lembra que Deus escolheu pecadores antes da fundação do mundo. A eleição do crente não é baseada em nenhum mérito ou valor que esteja neles – nem mesmo na disposição de se arrepender. Em vez disso, a eleição depende totalmente da graça soberana de Deus.
Na verdade, o que é escandaloso sobre o Evangelho é que Deus nos amou quando ainda éramos pecadores (Rm 5.8). Portanto, tornar a oferta de perdão condicional ao arrependimento é alterar a mensagem do Evangelho. O Evangelho é uma boa notícia porque é oferecido gratuitamente a todas as pessoas, não importa quem sejam ou o que tenham feito. Portanto, devemos concluir que o perdão é oferecido antes do arrependimento.
Então, aonde isso nos leva? Bem, espero que possamos ver que o perdão não é direto. Portanto, devemos começar fazendo mais perguntas: O que é perdão? Qual é o papel do arrependimento no perdão? Devemos imitar o perdão de Deus? As vítimas são obrigadas a perdoar seus agressores? O que isso parece mesmo?
Vejamos a primeira questão antes de passarmos para as outras. O que é perdão?
O Escândalo do Perdão
Antes de podermos pensar em perdoar os outros, temos que entender o perdão de Deus. Isso é crucial porque recebemos a ordem de “perdoai-vos mutuamente, …. Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós” (Cl 3.13).
Existem três palavras gregas principais, no NT, traduzidas como perdão. O perdão pode ser traduzido como chrizomai, que significa “conceder graça”. Em geral, refere-se à ação graciosa de Deus para perdoar (p. ex. Ef 4.32; Cl 2.13, 3.13). No entanto, também descreve a bondade e generosidade de espírito que um cristão deve incorporar no perdão de pessoa para pessoa. Esses versículos lembram aos cristãos que eles não podem ganhar o perdão, pelo contrário, é uma dádiva. Deus graciosamente perdoa o pecador sem que ele tenha nenhum mérito próprio. De maneira semelhante, em um relacionamento pessoa a pessoa, oferecer perdão a um transgressor é um ato gracioso. O perdão nunca é merecido ou conquistado.
As palavras seguintes para perdão são apheimi (p. ex. Mc 2.5; 3.28; 11.25), que significa “deixando ir” e aphesis (Mc 1.4; 3.29), “libertando-se da obrigação de punição”. O que são os perdoadores ‘deixando ir’? O perdão é visto aqui como o abandono dos erros cometidos contra as pessoas.
O NT ilustra isso conectando o perdão com a liberação da dívida. Na cultura judaica, se você tinha uma dívida com alguém que não podia pagar, você poderia ser jogado na prisão ou feito escravo. Se você tivesse essa dívida liquidada, isso significava liberdade.
Isso é semelhante à maneira como a Bíblia fala sobre dívidas e pecado. Como humanos, somos devedores a Deus por causa de nossos pecados contra ele. Quando somos perdoados, Deus paga essa dívida por nós, libertando-nos das terríveis consequências do nosso pecado. Assim, quando uma pessoa perdoa outra, ela abre mão da dívida que lhe é devida, junto com qualquer amargura e ressentimento que ela tenha para com essa pessoa. Como Volf escreve: “Perdoar é dar aos malfeitores o presente de não considerar o mal contra eles”. (130)
Portanto, o perdão de Deus para com os humanos, em seu nível mais básico, é um ato gracioso onde ele não considera suas transgressões contra eles. Isso significa que ele simplesmente deixa o pecado ir? Não, porque ele é justo e reto. Ele não pode simplesmente deixar o pecado ir, porque isso significaria que ele trataria o pecado de maneira trivial ou seria desonesto. Isso prejudicaria o caráter justo de Deus. Todo pecado diante dele é hediondo e deve ser punido – desde uma mentira inocente até o estupro. Deus deve condenar e punir o pecado porque ele é perfeitamente santo.
Na verdade, a justiça de Deus é uma extensão do seu amor. Se ele não punisse o pecado, então deixaria de ser amoroso, porque o oposto da ira não é o amor, mas a apatia. Ele não é um “vovô no céu”, mas o sagrado Criador do universo. Volf novamente, “Deus não pode suspender a justiça mais do que Deus pode deixar de ser Deus” (143).
Justiça mantida
A questão a ser enfrentada, então, é esta: Como Deus mantém sua justiça enquanto perdoa o pecador? A Bíblia é clara ao afirmar que Deus apresenta seu Filho como sacrifício de expiação (Rm 3.24). Em outras palavras, o Senhor Jesus toma o lugar do pecador, carrega seus pecados, propicia a ira de Deus, perdoando assim o pecador. Como Lutero escreve, “Cristo, o Filho de Deus, está em nosso lugar e levou todos os nossos pecados sobre seus ombros … ele é a satisfação eterna por nosso pecado e nos reconcilia com Deus, o Pai”. (Lutero, 144).
E o perdão que o crente recebe, por meio de Cristo, é total. Por meio de Cristo, Deus não contabiliza mais seus pecados contra eles (Rm 4.8). Nem uma grama de pecado permanece sem ser tratado. Por meio de Cristo, seus pecados são completamente cobertos (Sl 32.1). Por meio de Cristo, suas transgressões são removidas deles, tanto quanto o Oriente está distante do Ocidente (Sl 103.12).
Por meio de Cristo, Deus não se lembra mais de seus pecados; eles são enviados ao esquecimento. Por meio de Cristo, a punição é paga e o pecador é declarado inocente! O perdão de Deus o liberta da escravidão da culpa e da vergonha que antes carregava sobre os ombros. É imenso. É grátis. É por isso que Newton escreveu, “Amazing Grace, How Sweet the Sound”.
No entanto, o perdão de Deus não é apenas extraordinário; também é escandaloso. Por que, você pergunta? Bem, o perdão de Deus é escandaloso porque está disponível para todos – não importa quem sejam, não importa o que tenham feito. Como Volf escreve: “Não há pessoas que sejam tão más que Deus não as possa perdoar e que Cristo não possa morrer por elas”. (177) Inclui o traficante e a velhinha. O pedófilo e a assistente social. O estuprador e o voluntário de caridade. O religioso e o não religioso. O abusador e o abusado.
Surpresos e maravilhados
É aqui que nossas pequenas e educadas ideias sobre Deus, amor e perdão vão por água abaixo. O céu não está cheio de bons cristãos que chegaram lá com base em seus próprios méritos. Está cheio de pecadores miseráveis que foram salvos pela graça. Esse é o tipo de ensino que deixou os líderes religiosos furiosos. Este é o tipo de ensino que crucificou Jesus.
Aqui está o problema: não entendemos o perdão de Deus se não estivermos surpresos e maravilhados. O perdão de Deus deve provocar em nós uma infinidade de emoções profundas – da gratidão à raiva, da compreensão à confusão, da gratidão ao choque. O perdão de Deus, devidamente compreendido, lhe dará vertigem. Isso vai virar seu mundo de cabeça para baixo.
Quando pensamos no retorno do pródigo, amamos a história, porque podemos imaginar o filho pródigo como um patife adorável, como nós. No entanto, se o filho pródigo fosse um abusador, ficaríamos indignados. Este é o escândalo do perdão de Deus.