Perdão e abuso: Ecoando o perdão de Deus (Parte 3)

Deixe-me começar com uma declaração importante: Não podemos perdoar exatamente da mesma maneira que Deus. Existem várias razões para isso.

Como o pecado nos afeta

Em primeiro lugar, o pecado nos afeta de maneira diferente de como afeta Deus. Ele é o Deus inviolável. Em outras palavras, nossos pecados não o mudam. O pecado o entristece, sim, mas não o fere ou prejudica.

No entanto, quando alguém peca contra nós, isso nos afeta psicológica, física e até espiritualmente. O agressor deixa uma marca indelével em sua vítima. É por isso que o perdão é uma luta tão grande para a vítima de abuso. É uma batalha poderosa para eles, porque o agressor infligiu danos profundos, muitas vezes indescritíveis. Nós questionaríamos (com razão) uma vítima de abuso se ela simplesmente se voltasse alegremente e dissesse “Eu os perdoo”. Se alguém perdoa levianamente, não é necessariamente um sinal de perdão, mas um sinal de que varreram o passado para debaixo do tapete. Normalmente, haverá profunda raiva, ressentimento e amargura a superar antes que o ato de perdão possa ser oferecido.

Em segundo lugar, Deus pode – e o faz – perdoar imediata e totalmente. Em contraste, nosso perdão geralmente é fraco, leva tempo e nunca é completo. É crucial, para a vítima de abuso, entender isso. Quando Deus nos perdoa em Cristo, há uma restauração completa e imediata em nosso relacionamento com ele. O perdão e a reconciliação andam de mãos dadas. Paulo escreve em 2 Coríntios 5.18-19: “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões,” Deus não considera mais nossos pecados contra nós. Portanto, estamos reconciliados com ele. Nosso relacionamento rompido com ele é permanente e totalmente restaurado.

No entanto, o perdão entre pessoas pecadoras nem sempre leva a um relacionamento restaurado, especialmente na área do abuso. A relação entre o agressor e a vítima foi profundamente rompida. A confiança foi destruída. A dor é abundante. Portanto, qualquer reconciliação levará tempo (se é que é possível). O arrependimento genuíno precisará ser visto e experimentado por parte do agressor, se houver qualquer chance de um relacionamento restaurado.

Além disso, pode haver outros fatores complicadores. O agressor pode não estar arrependido. Pode ser perigoso para a vítima falar com o agressor porque ele ainda é uma ameaça para ela. O perpetrador pode estar morto. De qualquer forma, o perdão sempre é possível, mas a reconciliação nem sempre é. Esta é uma distinção crucial que precisamos entender, e vamos nos aprofundar nesse assunto na próxima parte deste artigo.

Em terceiro lugar, não podemos perdoar como Deus porque, como o Juiz Santo e Justo, ele pune e condena o pecado, e então perdoa. Deus ofereceu Cristo em nosso lugar. No entanto, não podemos morrer por nossos pecados ou pelos de qualquer outra pessoa. Portanto, quando perdoamos, vai parecer que a justiça não foi feita. Como se não houvesse punição. Esta é uma das maiores lutas da vítima de abuso. Eles querem olho por olho. Elas não querem deixar o malfeitor ir! Elas querem justiça! E com razão. Mas muitas vezes elas não vão conseguir isso nesta vida.

Eco, não espelho

Então, como cristãos, não perdoamos exatamente como Deus, mas somos chamados a ecoar o perdão de Deus. Como Volf escreve: “Nós imitamos a Deus como instrumentos de Deus: Deus dá e perdoa, e nós fazemos com que a dádiva de Deus e o perdão de Deus sejam nossos”.

Como é isso? Volf, em seu livro, diz quatro coisas. Em primeiro lugar, significa condenar a ofensa. O perdão não significa que ignoramos o pecado ou o varremos para baixo do tapete como se não importasse. Deus não ignorou nosso pecado. Longe disso. Ele condenou nosso pecado em Cristo. E antes que possamos perdoar, temos que identificar o pecado e condená-lo pelo que é. O perdão não é barato.

Em segundo lugar, significa que colocamos de lado a ideia de vingança. Paulo escreve: “não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor.” (Rm. 12.19). Quando optamos por perdoar alguém, entregamos a vingança ao Senhor. Dizemos: “Não vou buscar vingança”.

Na verdade, como escreve Volf, “absorvemos o prejuízo” da mesma forma que podemos absorver o impacto financeiro de uma má transação comercial. O perdão é a absorção da dívida contra nós. Isso não significa que “abandonamos as medidas disciplinares”. Os abusadores devem ser levados ao tribunal e a justiça deve ser realizada. No entanto, a punição não é nossa. Deixamos nas mãos de Deus e, sempre que possível, do Estado.

Esta é uma batalha pela vítima, porque tudo dentro delas grita por vingança. Elas naturalmente desejam que o agressor experimente a punição justa por seus erros. O perdão, portanto, custa caro. Custará muito à vítima absorver o que está errado e não praticar sua própria justiça. Esta será uma batalha diária, pois elas confiarão sua mágoa e dor àquele que julga com justiça (1Pe 2.23).

Em terceiro lugar, o perdão significa considerar a pessoa inocente. Quando Deus nos perdoa, somos declarados “inocentes”. Cristo toma nosso lugar, suporta nossa punição, e Deus credita em nossa conta a justiça de Cristo. Tornamo-nos coerdeiros com Cristo.

Da mesma forma, perdoar alguém significa declará-lo inocente. Significa dizer: “Eu o liberto da culpa do pecado. Eu não te condeno mais pelo que você fez”. Enquanto escrevo essas palavras, me encolho por dentro, e muitos provavelmente vão querer pegar seus computadores e quebrá-lo em pedacinhos. Estamos prestes a “não tomar vingança”, mas libertar alguém de sua culpa? Declarando-os inocentes do que fizeram? Certamente isso é ir longe demais! No entanto, se estamos imitando o perdão de Deus, então não é isso que ele faz por nós? Ele não apenas remove a punição, mas também nos abençoa.

Finalmente, e talvez o mais difícil, o perdão significa esquecimento. Quando Deus nos perdoa, ele lança nossos pecados ao fundo do mar (veja Mq 7.19), para nunca mais serem trazidos à tona. Quando perdoamos os outros, isso significa fazer o mesmo.

Perdão custa caro

Imagine um marido e uma esposa. O marido esquece o aniversário de casamento deles, então eles têm uma grande discussão. A esposa pune o marido dizendo-lhe para dormir no quarto de hóspedes, além de dar-lhe o tratamento do silêncio pelo resto do dia. No dia seguinte, eles começam a conversar novamente e ela o perdoa. Ele volta para o quarto e tudo parece bem. No entanto, no dia seguinte, a esposa traz a discussão novamente e o lembra de seu pecado contra ela. A punição foi removida, mas a acusação ainda está lá. Ela removeu a vingança, mas ainda o condena. Isso não é perdão.

O perdão bíblico não é simplesmente recusar-se a se vingar, mas também remover a condenação! Isso não contradiz o ponto um e o reconhecimento da transgressão? Volf, mais uma vez, escreve de forma prestativa: “Quando perdoamos, reconhecemos as ofensas e culpamos o autor do crime. Mas então tratamos a pessoa como se a ofensa não tivesse acontecido. Perdoar significa basicamente dar a uma pessoa o dom de existir como se ela não tivesse cometido a ofensa”.

Agora, como eu disse, esta é a mais difícil das quatro partes do perdão. A pergunta que devemos fazer é: Somos mesmo capazes de fazer isso? Eu ainda tenho pequenas ofensas do passado rolando em minha cabeça, e alguns males menores que foram cometidos contra mim. Como a pessoa que foi abusada pode deixar a memória de seu abuso escapar de sua mente? Não é fácil. É uma batalha sobrenatural que acontece ao longo da vida e só atinge seu cumprimento no céu.

O aspecto positivo do perdão

No entanto, neste ponto, quero que vejamos que o perdão total não deve simplesmente colocar a vingança de lado. Deve ter um aspecto positivo também. Quando somos perdoados, Cristo leva a punição que merecemos, e então Deus credita em nossa conta a sua própria justiça. Ele não somente deixa de nos aplicar o castigo, mas nos adota como seus filhos. Ele remove nosso pecado de nós e não se lembra mais dele. Este é o escândalo da graça.

Portanto, se quisermos repetir esse perdão escandaloso, abandonar as mágoas do passado – mesmo as mais horrendas – ele nos levará a não nos lembrarmos mais delas. Elas são consignadas, de alguma forma, aos livros de história.

Mais uma vez, deixe-me afirmar: não podemos perdoar exatamente da mesma maneira que Deus. Deus é perfeito em seu perdão. Nós não somos. Seu perdão é imediato. O nosso é um processo. O dele é completo. O nosso é débil. Ele opta por esquecer. Muitas vezes nós nos apegamos ao passado. É por isso que precisamos da obra sobrenatural de Deus em nossas vidas para nos ajudar a perdoar. No entanto, antes de chegarmos ao poder do perdão, precisamos pensar sobre o lugar do arrependimento. Vamos examinar isso mais de perto da próxima parte do artigo.

Por: Andy Constable. © 20schemes. Website: 20schemes.com. Traduzido com permissão. Fonte: Forgiveness and Abuse: Echoing God’s Forgiveness (Part Three).

Original: Perdão e abuso: Ecoando o perdão de Deus (Parte 3). © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.