Perdão e abuso: Eu tenho que perdoar? (Parte 2)

O perdão de Deus, como vimos na primeira parte, é imenso, extraordinário, escandaloso. A pergunta natural que se segue é: Somos chamados a perdoar da mesma forma que Deus? Se sim, o que isso significa? Bem, em Mateus 6.14-15 Jesus declara: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém, não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas”.

Perdoar como Deus?

Agora, na primeira leitura, Jesus parece estar dizendo que Deus só perdoará alguém se eles estiverem dispostos a perdoar os outros. Em outras palavras, o perdão de Deus está condicionado ao perdão dos outros. Mas o problema, com essa leitura do texto, é que o perdão de Deus se torna um pagamento, não uma dádiva. Além disso, significa que o perdão de Deus pode ser retirado a qualquer momento; que o sangue de Jesus não cobriu todos os nossos pecados. Isso levaria o cristão, e em particular a vítima de abuso, a uma situação de dúvida sobre a certeza de sua salvação.

Imagine que você foi abusado quando criança. Seu tio sistematicamente batia em você e obrigava você a praticar atos sexuais. Agora você se tornou um cristão, e sua cabeça está diariamente cheia de pensamentos sobre o abuso anterior. A raiva cresce dentro de você cada vez que pensa no passado e, em um dia ruim, você não consegue pensar em nada além de vingança. Isso significaria que Deus retém seu perdão de você até que você possa reunir força suficiente para perdoar o transgressor? Isso significaria que o perdão de Deus é desfeito diariamente. Não pode ser isso que Jesus quis dizer aqui.

Para entender as palavras de Jesus, devemos considerar o contexto. Jesus diz essas palavras na parte final da oração do Senhor e no meio de seu Sermão do Monte. O Sermão do Monte é Jesus inaugurando o reino de Deus (Mt 4.17). Em outras palavras, Jesus está dizendo a seus discípulos como será segui-lo. E devemos lembrar que ele está indo para a cruz, onde morrerá para perdoar os pecados de seu povo, o que, por sua vez, os capacitará a ser um povo perdoador.

Então, Jesus não está comunicando que o perdão de Deus depende do perdão deles. Longe disso. Ele está comunicando que o perdão de Deus permite que eles perdoem aqueles que pecam contra eles. Em outras palavras, devemos ler as cláusulas ‘se’ como “isso é provável que ocorra”, ao invés de uma pré-condição do perdão de Deus para nós.

Como Deus perdoa

Pense nisso como um círculo: Deus nos perdoa, e isso nos liberta para perdoar aqueles que pecam contra nós. Portanto, o perdão dos outros confirma que o Espírito de Deus habita em nós e que fomos perdoados. Leon Morris escreve: “Não é que o ato de perdoar mereça uma recompensa eterna, mas, antes, é uma evidência de que a graça de Deus está operando na pessoa que perdoa e que essa mesma graça lhe trará perdão no devido tempo”.

Na verdade, nossa luta com o perdão muitas vezes se deve ao fato de que esquecemos o escândalo e a imensidão do perdão que nos foi dado. Estamos presos na descrença. Lutero escreve:

“O perdão exterior que mostro em minhas ações é um sinal seguro de que tenho o perdão dos pecados aos olhos de Deus. Por outro lado, se eu não mostrar isso em minhas relações com meu próximo, tenho um sinal seguro de que não tenho o perdão dos pecados aos olhos de Deus e ainda estou preso na minha descrença”.

Em outras palavras, a evidência de que a graça de Deus está operando em nossas vidas é a extensão da misericórdia e graça de Deus para os outros. Como observa Mark Beach, somos “pessoas perdoadas que buscam perdão e buscamos perdoar os outros”.

Essa passagem é concretizada na parábola do credor incompassivo (Mt 18. 21-35). Nesta parábola, um servo deve ao rei uma grande quantia – dez mil talentos – que ele não pode pagar. Quando é chamado para acertar as contas, o servo se prostra perante o rei que se compadece dele e perdoa-lhe a dívida. O rei é extravagantemente generoso.

No entanto, quando esse mesmo servo se depara com outro servo que lhe deve uma quantia muito menor (cem denários, que ainda é uma quantia considerável), que ele não pode pagar, ele não tem misericórdia e o joga na prisão. Esse servo é então repreendido pelo rei e jogado na prisão até que pudesse pagar a quantia total. O contraste é claro: o servo devia uma quantia impagável ao rei e ainda assim foi liberado de sua dívida. No entanto, quando ele se deparou com outro que lhe devia dinheiro, ele não correspondeu com o espírito generoso e misericordioso do rei.

Dívida perdoada

O ponto aqui é claro. Como cristãos, estávamos endividados até o pescoço, e não apenas com um rei terreno, mas com o Rei do universo. Pecamos contra ele. O que merecíamos dele não era nada além do inferno. No entanto, em Cristo, Deus eliminou nossa enorme dívida e creditou em nossa conta a justiça de Cristo. Ele tem sido incomensuravelmente generoso conosco.

Portanto, à luz de seu misericordioso perdão, devemos perdoar aqueles que pecam contra nós. Devemos liberar as pequenas dívidas (em comparação com a dívida que Deus deixou ir) contra nós. Em outras palavras, o cristão é chamado a ecoar o perdão de Deus. O cristão é chamado a ser generoso e a libertar os outros da obrigação do castigo. Eles devem perdoar, como foram perdoados em Cristo. E isso incluirá os abusados perdoando seus agressores.

Bem, eu sei que aqueles que estão lendo este artigo, que são vítimas de abuso, podem, neste ponto, estar pensando: Ele só pode estar brincando. Perdoar meus abusadores, você deve estar brincando! Fui estuprada, fui molestada, fui envergonhada, fui humilhada, explorada, fui espancada, fui urinada. Você não sabe o que eu passei! Você não sabe o que as pessoas fizeram comigo!

Deixe-me então, neste ponto, dizer: eu não sei o que você passou. Eu nunca fui abusado. Minha família era amorosa e gentil. Não consigo imaginar a dor psicológica e física que você sofreu. Não consigo imaginar os sentimentos de vergonha. Meu estômago revira sempre que ouço uma história de abuso. Não estou dizendo que nada disso seja fácil, e não estou dizendo que nada disso aconteça durante a noite. O perdão é um ato caro que exige uma obra sobrenatural do Espírito.

Mas, de qualquer forma, isso é algo que o crente precisa pensar. Temos que lembrar que o Senhor Jesus também foi abusado. Ele foi humilhado. Ele foi cuspido. Ele foi tratado com desprezo. Ele foi chicoteado até perder a vida. Ele foi pendurado nu em uma cruz, riram dele e o mataram por diversão. E por quê? Para comprar nosso perdão. Para nos libertar da penalidade de nosso pecado. Ele carregou nossos pecados no madeiro. Ele experimentou a ira de Deus. Ele tirou nossa culpa e vergonha. Se Jesus grita “perdoa-lhes” na cruz, então nós também, pelo menos, temos que pensar em nosso perdão aos outros. Até ao pior dos pecadores.

Aqui, novamente, é onde o perdão é difícil. Estamos bem quando estamos sendo perdoados, mas assim que temos que perdoar os outros, é muito mais difícil. Queremos brincar de Deus e decidir quem recebe nosso perdão e quem não recebe. Como escreve Volf: “O escândalo do perdão indistinto de Deus nos atinge ainda mais fortemente quando somos chamados a imitá-lo. Quando precisamos perdoar, a maioria de nós, talvez inconscientemente, sinta-se no direito de traçar um círculo em torno do escopo do perdão. Devemos perdoar alguns, talvez até a maioria, dos seus erros, mas certamente não todos”. Para isso nós nos voltaremos na próxima parte.

Por: Andy Constable. © 20schemes. Website: 20schemes.com. Traduzido com permissão. Fonte: Forgiveness and Abuse: Do I Have to Forgive? (Part Two).

Original: Perdão e abuso: Eu tenho que perdoar? (Parte 2). © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.