Ele ficou em casa para salvar o mundo

Andrew Fuller (1754–1815)

Você não vai ler nos livros de história secular ou ouvir no noticiário noturno, mas julgado por quase qualquer padrão, o movimento missionário moderno – iniciado com a partida de William Carey para a Índia em 1793 – é o desenvolvimento histórico mais importante no último duzentos anos. Stephen Neill, na conclusão de sua History of Christian Missions (História das Missões Cristãs), escreve: “O frio e racional século XVIII dificilmente foi uma sementeira promissora para o crescimento cristão; mas dele saiu uma explosão de empreendimento missionário cristão maior do que visto em todos os séculos anteriores” (571).

Então, o que aconteceu para que o século XVIII “frio e racional” deu origem ao maior movimento missionário da história mundial – um movimento que continua até hoje, do qual, se você quiser, você pode fazer parte? Os caminhos de Deus são mais elevados do que os nossos, e seus caminhos são insondáveis e inescrutáveis (Rm 11.33).

Mais fatores levaram a este grande movimento do que qualquer ser humano pode conhecer. Tudo que eu quero fazer é documentar um deles – apenas uma das dez mil coisas que Deus fez para libertar este grande movimento missionário, que exalta Cristo, avança com o Evangelho, expande a igreja, confronta o mal, vence Satanás, transforma a cultura, salva almas e assalta o inferno.

Grandes Ganhos e Perdas

Andrew Fuller faleceu em 7 de maio de 1815, aos sessenta e um anos. Ele havia sido pastor da Igreja Batista em Kettering (com uma população de cerca de três mil pessoas) por trinta e dois anos. Antes, ele havia sido pastor em Soham, e antes disso, ele era um menino crescendo na fazenda de seus pais, recebendo uma educação simples. Ele não teve nenhum treinamento teológico formal, mas se tornou o principal porta-voz teológico dos batistas particulares (ou seja, calvinistas) em seus dias. Ele começou a pregar ocasionalmente em sua igreja em Soham aos dezessete anos, e quando ele tinha vinte e um, eles o chamaram para ser o pastor.

Um ano depois de se tornar pastor em Soham, ele se casou com Sarah Gardiner. Nos dezesseis anos antes de sua morte, o casal teve onze filhos, dos quais oito morreram na primeira infância. Sarah morreu dois meses antes da Baptist Missionary Society (Sociedade Missionária Batista) ser formada na casa de Fuller em outubro de 1792.

Frequentemente, é assim no ministério: o maior ganho e a maior perda em dois meses. “quem, todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 10.39). “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto.” (Jo 12.24). Ele se casou novamente. Em 1794, com Ann Coles, que sobreviveu a ele por dez anos.

Segurando a Corda

Durante seus quarenta anos de ministério pastoral, Fuller tentou fazer mais do que um homem pode fazer bem. Ele tentou criar uma família, pastorear uma igreja, envolver-se nos erros doutrinários destrutivos de sua época, com escritos intermináveis, e atuar como líder da Baptist Missionary Society.

Um pequeno grupo de pastores batistas, incluindo William Carey, havia formado a Baptist Missionary Society em 2 de outubro de 1792. Fuller, mais do que qualquer outra pessoa, sentiu o peso do que significava William Carey e John Thomas (e mais tarde outros) deixar tudo e ir para a Índia, na dependência, sob Deus, deste grupo de irmãos. Um deles, John Ryland, registrou a história de onde veio a famosa imagem do segurar a corda. Ele escreveu:

“Nosso empreendimento para a Índia realmente me pareceu, no início, ser algo como alguns homens, deliberando sobre a importância de penetrar em uma mina profunda, que nunca havia sido explorada antes. Não tínhamos ninguém para nos guiar; e enquanto estávamos deliberando, Carey, disse: “Bem, eu desço, se vocês segurarem a corda”. Mas antes que descesse… ele tomou um juramento de que cada um de nós, na boca do poço, ao que me pareceu, nesses moldes – que “enquanto vivêssemos, nunca deveríamos largar a corda”. (Offering Christ to the World, 136).

Fuller serviu como o principal promotor, pensador, arrecadador de fundos e redator de cartas da sociedade missionária por mais de vinte e um anos. Ele segurou aquela corda com mais firmeza e maior consciência do que qualquer outra pessoa. Ele viajou continuamente, discursando para angariar apoio para a missão. Ele registrava as prestações de conta periódicas regularmente. Ele fornecia as notícias para o Baptist Annual Register, a Evangelical Magazine e a Baptist Magazine. Ele assumiu o papel principal na seleção de novos missionários. Ele escrevia regularmente para os missionários no campo e para as pessoas em casa.

Sofrimento Extraordinário

Tecido em toda esta obra, tornando sua perseverança ainda mais surpreendente, está o sofrimento extraordinário, especialmente suas perdas. Ele perdeu oito filhos e sua primeira esposa. Em 10 de julho de 1792, ele escreveu: “As aflições de minha família quase me oprimiram, e o que ainda está diante de mim, não sei! Há cerca de um mês, a aflição de meu querido companheiro tem sido extremamente forte.” Então, em 25 de julho, “Oh meu Deus, minha alma está abatida dentro de mim! As aflições de minha família parecem pesadas demais para mim. Oh, Senhor, estou oprimido, empreende por mim!” (The Complete Works of the Rev. Andrew Fuller, 1.58-59). Quando sua esposa morreu um mês depois (23 de agosto de 1792), tendo perdido oito de seus filhos, Fuller escreveu estas linhas:

“A terna mãe não lamenta mais suas perdas,

Nem trabalha mais sob a carga pesada da vida;

A alma ansiosa, livre de medos e angústias,

Encontrou sua casa, seus filhos e seu Deus.” (Works, 1.59-61).

Fuller e os Hipercalvinistas

Esse é o contexto pessoal, pastoral e missionário do envolvimento de Fuller com os erros espirituais e doutrinários de sua época. E, apesar de todo o seu ativismo, são seus escritos controversos e doutrinários que mais serviram à causa das missões mundiais.

Fuller cresceu no que ele chamou de Alto Calvinismo – ou Hipercalvinismo. Ele disse mais tarde que o ministro da igreja em Soham (John Eve) tinha “pouco ou nada a dizer aos não convertidos” (Offering Christ to the World, 27). A maior conquista teológica de Fuller foi ver, defender e espalhar a verdade de que o Calvinismo histórico e bíblico abraçava totalmente a oferta do evangelho a todas as pessoas, sem exceção.

O raciocínio hipercalvinista, nas palavras de Fuller, era assim:

“É absurdo e cruel exigir de qualquer homem o que está além de seu poder de realizar; e como as Escrituras declaram que ‘Ninguém pode vir a Cristo, a menos que o Pai o traga’, e que ‘O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, nem pode entendê-las, porque são discernidas espiritualmente’, conclui-se que essas são coisas para com as quais o pecador, embora não regenerado, não tem obrigação.” (Works, 2.376).

“É uma espécie de máxima para essas pessoas”, disse Fuller, “que ‘ninguém pode ser obrigado a agir espiritualmente, senão pessoas espirituais’” (Works, 2.360). A conclusão prática a que eles chegaram foi que a fé em Cristo não é um dever dos não eleitos. Não é um dever para o não regenerado. Portanto, você nunca clama por fé indiscriminadamente. Você nunca se coloca diante de um grupo de pessoas – seja na Grã-Bretanha ou na Índia – e diz: “Creia no Senhor Jesus Cristo!” Você nunca exorta, implora, chama, ordena ou incita.

O efeito dessa distorção racionalista do Calvinismo bíblico foi que as igrejas estavam sem vida, a denominação dos Batistas Particulares estava morrendo e a nova missão na Índia sofria oposição.

Incapacidade Natural e Incapacidade Moral

Na obra mais famosa de Fuller, The Gospel Worthy of All Acceptation (O Evangelho Digno de Toda Aceitação), ele empilha texto sobre texto em que os incrédulos são chamados ao dever de crer (Sl 2.11-12; Is 55. 1-7; Jr 6.16; Jo 5.23; 6.29; 12.36, (Works, 2.343-66). Este é seu último tribunal de apelação contra os Altos Calvinistas, que usavam sua lógica professada para passar de premissas bíblicas a conclusões antibíblicas.

Mas Fuller também encontra em Jonathan Edwards grande utilidade para responder, à objeção do Alto Calvinismo, em outro nível. Lembre-se, a objeção é que “é absurdo e cruel exigir de qualquer homem o que está além de seu poder de realizar”. Em outras palavras, a incapacidade de um homem crer remove sua responsabilidade de crer (e nosso dever de ordená-lo a crer). Em resposta a essa objeção, Fuller apresenta a distinção entre incapacidade moral e incapacidade natural, um insight fundamental que ele aprendeu com Edwards.

A distinção é esta: a incapacidade natural é devido à falta de “faculdades racionais, poderes corporais ou vantagem interior”; mas a incapacidade moral é devido à falta de inclinação por causa de uma vontade contrária. A incapacidade natural, de fato, remove a obrigação. Mas a incapacidade moral não, e este é o tipo de incapacidade da qual a Bíblia fala quando diz: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.” (1Co 2.14).

Em outras palavras, é tão impossível para você escolher fazer o que você não tem inclinação para fazer quanto o que você não tem capacidade física para fazer. Mas a incapacidade devido a obstáculos físicos pode desculpar, enquanto a incapacidade devido a uma vontade rebelde não (Works, 2.378).

Pregar, Convidar, Chamar, Advertir

A conclusão muito importante de todo este trabalho exegético, doutrinário teológico e sua controvérsia, foi a enorme implicação prática para o evangelismo e missões mundiais:

Creio que é dever de todo ministro de Cristo pregar, clara e fielmente, o evangelho, a todos os que o ouvirem; e, como eu acredito que a incapacidade dos homens, de [fazer] coisas espirituais para serem corretamente morais os torna, portanto, criminosos – e que é seu dever amar o Senhor Jesus Cristo e confiar nele para a salvação, embora eles não confiem; creio que as pregações, convites, apelos e advertências solenes para eles, não só devam ser consistentes, mas diretamente adequadas como meios, nas mãos do Espírito de Deus, para levá-los a Cristo. Considero como parte do meu dever não me omitir sem ser culpado do sangue das almas. (Offering Christ to the World, 106).

O envolvimento de Fuller neste nível de rigor intelectual, como pastor e pai de família, pode parecer errado. O preço foi alto em sua igreja e em sua família. Mas o fruto para o mundo foi incalculavelmente grande. Ninguém mais estava no horizonte para dar um golpe contra a doutrina do Alto Calvinismo que destrói a igreja, impede o evangelismo e mata missões. Fuller fez isso, e a plataforma teológica foi preparada para o lançamento do maior movimento missionário do mundo.

Um Elo Vital

O que devemos aprender com isso? Devemos aprender qual é o elo vital entre a fidelidade doutrinária da igreja e a causa das missões mundiais. O principal impulso de nossos dias está na outra direção. Para onde quer que você vá, há uma pressão para acreditar que as missões dependem de não discutir doutrina. Assim que você envolver outro cristão professo em controvérsia sobre alguma questão bíblica, o clamor vai aumentar: “Pare de perder seu tempo e se preocupe com missões.” O que aprendemos com Fuller é que esses gritos são, na melhor das hipóteses, historicamente ingênuos e, na pior, uma cortina de fumaça para a disseminação desinibida do erro.

Uma lição crucial da vida de Andrew Fuller é que a defesa exegética e doutrinária da verdadeira pregação do evangelho, no final, não atrapalhou mas fez avançar o maior movimento missionário da história mundial. Obter a experiência cristã biblicamente correta e o Evangelho biblicamente correto são essenciais para o poder, perseverança e fecundidade das missões mundiais.

Por: John Piper. © Desiring God Foundation. Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: He Stayed at Home to Save the World.

Original: Ele ficou em casa para salvar o mundo. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.