Os chamados ordinários são necessários

Em seu livro Simplesmente Crente, Michael Horton escreve: “É bem mais fácil me entregar a um projeto de servir os pobres do que dar mais atenção à minha esposa e meus filhos. Isso é corriqueiro. Não consigo ver o impacto da dúzia ou mais de pequenas conversas, correções, risadas e tarefas que acontecem em um dia – ou mesmo em uma semana.” Eu não poderia estar mais de acordo.

Frequentemente, ansiamos por chamados extraordinários, chamados que irão produzir um grande impacto no mundo; chamados cujos resultados serão visíveis, mensuráveis e nos trarão um senso de propósito e realização. Mas, a realidade é que, na maioria das vezes, nossos chamados são mais ordinários do que realmente gostaríamos que fossem, nossas realizações diárias quase imperceptíveis e nossas vidas anônimas para a maior parte das pessoas ao nosso redor.

Quantas vezes o anseio por algo maior produziu descontentamento, murmuração e ingratidão em nossos corações? Ansiamos pela grandeza, e nos deparamos com uma pia cheia de louças para lavar, ansiamos por um trabalho empolgante e desafiador, enquanto a realidade nos espreme dentro de um vagão de trem para mais um dia de trabalho fatídico. A vida ordinária com seus chamados opacos parece desprezível à luz de nossas aspirações por chamados extraordinários. Mas, embora não haja holofotes para a mãe que acorda vez após vez para amamentar o seu bebê, nem para o jovem que cochila no ônibus após uma aula exaustiva, a realidade é que são os chamados ordinários que dão ritmo à vida e fazem dela o que ela realmente é; no fim das contas, os chamados ordinários não são desprezíveis, mas necessários.

Lamentavelmente, nossa cultura viciada em grandeza, transformou o ordinário em algo indesejável, algo indigno de ser mencionado. Contudo, houve um homem na História, que mesmo tendo o mais extraordinário de todos os chamados, viveu de modo ordinário neste mundo, entre a poeira das ruas de Nazaré, suor e a serragem numa carpintaria. Ele não julgou que ser grande era algo ao qual deveria se apegar, ao invés disso, se esvaziou e viveu da forma mais ordinária possível, até a morte e morte de cruz.

Na vida de Cristo enxergamos um chamado (extra)ordinário, Ele sabia para que veio, sabia que sua vida seria marcada por momentos de tirar o fôlego e que entre esses grandes momentos ele viveria o ordinário: faria os deveres de casa, obedeceria aos seus pais, criaria e consertaria peças na carpintaria, ensinaria repetidamente um grupo de homens tardios em aprender e dependeria da provisão de Deus da forma mais ordinária possível – não pense que Jesus multiplicava pães e peixes a todo tempo (Jo 4.27-31, Mt 16.5-7).

Jesus sabia de seu chamado extraordinário, mas ele viveu de modo ordinário neste mundo. Ele foi um homem comum, você o veria no metrô, você o veria comprando água na fila do ônibus – enquanto também estaria oferecendo água viva para a vendedora ambulante, você o veria tomando vinho e se alegrando no casamento de um primo ou esperando o almoço ficar pronto na casa de amigos queridos, e em cada uma dessas circunstâncias ele estaria sendo plenamente Deus, plenamente extraordinário.

Se até mesmo o mais extraordinário de todos os chamados neste mundo foi construído sobre dias ordinários, dias de cansaço e rotina, por que insistimos em desvalorizar o ordinário?

 

Vivendo à luz de um chamado extraordinário

Nos capítulos 5 e 6 da Epístola aos Efésios, o apóstolo Paulo apresentou diversas orientações práticas aos cristãos da comunidade de Éfeso:

“As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido. Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, Assim também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama […] Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. […] E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor. Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso senhor segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo, não servindo à vista, como para agradar a homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de coração, a vontade de Deus; […] E vós, senhores, de igual modo procedei para com eles, deixando as ameaças, sabendo que o Senhor, tanto deles como vosso, está nos céus e que para com ele não há acepção de pessoas.” (Efésios 5.22-25, 28 – 6.1, 4-6, 9)

Em cada uma dessas orientações distintas ecoa um chamado em comum: o chamado à uma vida ordinária EM CRISTO. De fato, somente em Cristo nossos chamados ordinários podem ser vividos à luz de um propósito muito maior. O chamado à uma vida ordinária apresentado pelo apóstolo Paulo não é em nada inferior, sabemos disso porque em capítulos anteriores ele expressou o mais alto e sublime chamado que os cristãos receberam da parte de Deus: a eleição em Cristo, a adoção de filhos e dádiva de todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo Jesus. Que chamado pode ser mais extraordinário do que esse?

Não obstante, Paulo expressou como esse chamado extraordinário deveria ser vivido de forma ordinária pelos mais diversos grupos de pessoas presentes na comunidade de Éfeso: maridos, esposas, pais, filhos, servos e senhores. Imagino que depois de ouvirem tantas coisas gloriosas acerca da nova vida em Cristo havia uma enorme expectativa: “E agora, como devemos viver à luz desse chamado grandioso?”, “Quais coisas extraordinárias devemos fazer?”, “Como Paulo, será que devemos abandonar tudo e pregar o Evangelho ao redor do mundo?”, “Viver radicalmente à sombra da espada?”, “Abandonar nossas esposas, maridos e filhos?”, “Que chamado grandioso nos aguarda nas próximas linhas escritas pela pena de Paulo?”

Ao contrário do que se poderia esperar, Paulo não convocou os maridos a um chamado heroico, saírem de suas vidas ordinárias de trabalho e cuidado familiar para uma vida extraordinária, erradicando a pobreza ao redor do mundo; ele não chamou os filhos a viverem radicalmente à sua própria maneira desbravando o mundo, mas a obedecerem seus pais dia após dia. E quanto aos servos? O apóstolo Paulo é duramente criticado por não ter ordenado que eles se rebelassem contra o sistema da época, mas, que, ao invés disso, cumprissem suas tarefas comuns com maior empenho, como ao Senhor e não a homens. A verdade é que ao apresentar esses chamados à luz da obra de Cristo, Paulo elevou o ordinário, mostrando que aquilo que seria apenas comum e, talvez, inferior para muitos, deveria expressar uma realidade muito maior: a obra extraordinária de Cristo.

É à luz desse chamado extraordinário, e somente por meio dele, que a vida ordinária encontra sentido e propósito, é somente porque Cristo viveu ordinariamente como homem, sendo extraordinariamente Deus, que nossa vida sob o sol eclode em graça. Somente em Cristo nossas aspirações pelo extraordinário podem ser saciadas, independentemente daquilo que fazemos, do quanto ganhamos e do quão reconhecidas somos por isso; o ordinário continua sendo ordinário, mas somos impulsionados a vivê-lo para glória de Cristo.

Servindo ordinariamente para um fim extraordinário

Mas, e quanto a parte de vivermos radicalmente por Cristo? E quanto à vida do próprio apóstolo Paulo, marcada por tantos feitos marcantes pela causa de Cristo? Estou certa de que Paulo compreendia o seu chamado e sabia de sua missão, e embora quisesse que todos fossem como ele (1Co 7.7), não impôs que cada homem e mulher cristão deixasse tudo para viver como ele viveu, antes, encorajou que os cristãos servissem ordinariamente para um extraordinário, os solteiros cuidando das coisas do Senhor, os casados das coisas de casados, os presbíteros cuidando das igrejas locais, as mulheres mais velhas servindo e aconselhando as mais novas, os jovens servindo aos seus irmãos com respeito e amor, todos com o fim de glorificar a Cristo.

Queridas, apesar da impopularidade destas palavras, não existe nada mais radical nesse mundo egoísta do que amar a Deus e ao próximo, não existe nada mais radical do que servir. Você aspira por uma vida extraordinária? Então, sirva. Se você puder obedecer a Cristo servindo ao seu próximo, você expressará genuinamente o chamado extraordinário de Deus em sua vida. Sei que isso pode parecer pequeno demais, mas se você já tentou, você sabe o quão difícil é servir. Não é um chamado fraco, é um chamado forte, forte demais para nós, por isso, em cada uma de suas orientações, Paulo aponta para Cristo, o alicerce de uma vida ordinária, servimos nele, por ele e a ele. Essa visão faz com que nossos chamados mais simples tenham valor, ir ao mercado fazer compras semanais ganha propósito se com isso estamos buscando o fim extraordinário de servir a Cristo acima de tudo; as noites insones de estudos para a faculdade, seguidas de uma jornada de trabalho intensa ganham propósito se apontam para a extraordinária glória de Deus na face de Cristo.

Desejamos fazer coisas grandes e tudo o que encontramos é uma pilha de roupas de crianças para lavar e brinquedos espalhados pela sala, de novo, refeições para preparar, de novo, relatórios para entregar, de novo, disciplinas e exames para realizar, de novo, mensalidades e boletos, de novo, de novo e de novo. Isso pode ser desanimador, mas, imagine Jesus, de novo e de novo, aquele que não precisava fazer nada DE NOVO o fez até o último dia de sua vida aqui nessa terra.

Sei que nossos dias não têm sido fáceis, em muitos deles desejamos uma vida totalmente diferente da que temos, uma vida mais… extraordinária, mas que esse anseio nos impulsione para Deus e não para nossas próprias aspirações. Sei também que a vida ordinária parece muito mais empolgante nas telas do que realmente é fora delas, talvez, por isso, as redes sociais nos cativem tanto, elas são uma forma de tornar as coisas ordinárias um pouco mais interessantes; o momento ordinário do café se torna mais cativante visto a partir de uma tela, o relacionamento com os filhos mais empolgante diante de curtidas e reações, mas reações viciam e a vida requer ação mesmo quando não há interações. Por isso, precisamos encontrar em Deus a verdadeira motivação para viver o ordinário quando tudo se torna cansativo e desestimulante.

Exultantes em meio à monotonia

G.K. Chesterton escreveu que Deus exulta na monotonia, por isso Ele faz com que todos os dias o sol se levante e se ponha, Ele faz com que os movimentos da terra sejam repetitivos e as estações se repitam ano após ano; porque aquilo que é monótono aos nossos olhos é belo aos olhos de Deus, é um reflexo embaçado de sua própria constância e exultação. É, talvez seja isso que nos falte: exultação. A exultação não ocorre apenas quando saímos do ordinário, mas quando conseguimos enxergar um Deus extraordinário através das coisas ordinárias, quando cada refeição preparada nos lembra da bondade e criatividade de Deus, quando cada passeio com o cachorro nos lembra que apesar do pecado, ainda podemos nos relacionar amigavelmente com esses seres tão diferentes de nós; quando todo o cansaço da maternidade nos lembra que que o amor de Deus é ainda maior e mais sacrificial que o amor de uma mãe, e que podemos repousar em seus braços tal como nossos filhos repousam tranquilamente nos braços maternos. São momentos como esses, minhas irmãs, em que o extraordinário invade o ordinário, que podemos enxergar com mais clareza que chamados ordinários não são chamados menores, chamados ordinários são o caminho diário para o destino extraordinário que Deus tem para nós. Ocasionalmente, na caminhada Ele nos permite ter grandes vislumbres, ventos extraordinários para que ansiemos ainda mais pelo destino final, mas eles ainda não são a realidade final. Ainda não, mas, chegaremos lá, e até que esse dia venha, Deus nos chama a arrumarmos nossas camas DE NOVO com vistas no extraordinário.