Teocracia: O que é e o que não é

Thiago Rafael Vieira
Jean Marques Regina

Este texto contém excertos do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, autoria de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina [3ª Ed. Rev. e ampl. São Paulo, Vida Nova, 2020.]

Para compreender a história da relação entre Igreja e Estado precisamos partir da premissa de que o Estado Laico não nasceu de um dia para o outro e muito menos com a Revolução Francesa, também, que não se trata de um sistema único, sem variantes e adotado de forma universal. No mesmo sentido, é essencial entender as características dos mais diferentes sistemas de interação entre a Igreja/Religião e o Estado, e um deles, que falaremos brevemente, é a Teocracia. Acompanhar a linha histórica e seus desdobramentos, permite ao leitor ter respostas e não cair na falácia de que o “Brasil está virando uma teocracia com o governo Bolsonaro”, ou que “a melhor forma de governo é uma teocracia” (pensando na Nova Jerusalém, realmente é, mas, por enquanto, entendemos que não).

Na teocracia existe uma identificação entre o Estado e a religião, ou, entre a sociedade política e a comunidade religiosa. Sendo que, no sistema tradicional da teocracia, existe um domínio do poder religioso sobre o poder político, enquanto no sistema da teocracia cesaropapista ocorre o inverso[1]. O professor José Afonso da Silva os denomina como sistemas da confusão,[2] visto que sucede uma verdadeira “confusão” entre o chefe do poder civil/secular e o chefe do poder religioso, que assume os dois signos, tanto o secular quanto o transcendental, em última análise.

Na Antiguidade, percebemos até mesmo a inexistência de domínio de um poder ou outro, pois tudo era uma coisa só. A confusão de signos na Antiguidade era enorme, isso desde as sociedades tribais, no período pré-civilizatório, até Platão, tanto que praticamente não existia qualquer distinção entre direito, moral e religião. Na maioria das civilizações da antiguidade, o poder político e o poder religioso confundiam-se ou coincidiam-se[3] dentro na unidade política, em típica teocracia pura sem distinção de poderes. Nem romanos nem gregos conheceram os tristes conflitos, tão comuns em outras sociedades, entre a igreja e o Estado. Mas isso deve-se unicamente ao fato de que o “Estado”, ou melhor dizendo, a “política”, estava submetida à religião. O Estado antigo não obedecia a um clero, mas era submetido à sua própria religião. Estado e religião estavam tão intimamente unidos que seria impossível não só fazer ideia do conflito entre eles, mas mesmo diferenciá-los entre si[4]. Esse modelo de teocracia permeava toda “a Antiguidade oriental, do Egito à Pérsia, e, de certa maneira, nas Cidades-Estados gregas, fundadas nos cultos dos mesmos antepassados”[5].

Como vemos, na Antiguidade clássica e antes dela, encontramos uma interação política entre o poder religioso e o político quase de forma a não existir uma distinção, enquanto, a partir do cristianismo esses poderes começam a serem distinguidos e separados, especialmente a partir da famosa frase de Cristo, registrada nos evangelhos: “Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

Já a teocracia cesaropapista nada mais que é do que uma variação da teocracia, onde existe uma ascensão do poder temporal ou político sobre o poder espiritual. No cesaropapismo encontramos a figura da autoridade civil acima da autoridade religiosa detendo a última palavra. Essa forma de interação da política com a religião ganha forma a partir de 44 a.C. quando César foi nomeado ditador perpétuo, sendo cônsul e Pontífice Máximo ao mesmo tempo, juntando de vez os signos do Poder Político e Religioso na mesma pessoa, com domínio do Político. Entrentanto a teocracia cristã é inaugurada pelo Imperador Constantino, primeiro quando ele promove a liberdade dos cristãos de cultuar a Deus, por meio do famoso Édito de Milão em 313 d.C, depois quando ele começa a influenciar a vida e o culto da Igreja Cristã, como se denota na própria convocação do concílio de Nicéia em 325 d.C, o qual ele preside, nos moldes do senado romano.

Podemos lembrar, ainda da teocracia de Carlos Magno, século IX, em que ele não assume o poder religioso, mas, utiliza seus valores para influenciar a corte e todo o reino, combatendo, também, os maus religiosos. A influência cristã foi tão grande na dinastia carolíngia a ponto de Eric Voegelin dizer que Carlos Magno inaugurou um sistema próprio, o qual ele denominou de papocesarismo.

Há muitos acontecimentos que confirmam as diferenças entre estes dois sistemas de teocracia. Nesse texto, listamos apenas alguns dos mais importantes. A partir deles, novas concepções começaram a florescer no seio de diferentes civilizações, dando origem a novos sistemas de governo e de interação deste com a Igreja, bem como permitindo que o povo e os governantes desenvolvessem alternativas para enfim promover a soberania das esferas, bem como garantir a liberdade religiosa.


[1] Miranda, Jorge.  Estudos sobre a Constituição (Lisboa: Almedina, 1979), p. 2.

[2] José Afonso Silva, Curso de Direito constitucional positivo, 16. ed. (São Paulo: Malheiros, 1999), p. 253.

[3] Davide Argiolas, A responsabilidade civil das entidades religiosas (Coimbra: Petrony, 2017), p. 38.

[4] Furtel de Coulanges, A cidade antiga, 2. ed., tradução de Jean Melville (São Paulo: Martin Claret, 2001), p. 118.

[5] Miranda, Jorge.  Estudos sobre a Constituição (Lisboa: Almedina, 1979), p. 3.