Um blog do Ministério Fiel
Não adorarás a tabela periódica
Além de ser uma belíssima mistura de autobiografia com relato de conversão, o clássico Surpreendido pela alegria (São Paulo: Mundo Cristão, 1998) está repleto de observações instrutivas sobre a vida de leituras de C. S. Lewis. Um de meus trechos preferidos é a descrição de seu primeiro encontro com G. K. Chesterton, em torno do qual o autor observou (p. 195):
Jamais ouvira falar dele e não tinha a menor ideia do que ele representava; tampouco posso explicar por que ele me conquistou tão prontamente. Talvez fosse de se esperar que meu pessimismo, ateísmo e ódio do sentimentalismo fizessem dele para mim o menos atraente de todos os escritores. […] Gostar de um autor pode ser tão involuntário e improvável como se apaixonar.
Tenho experiências semelhantes. Quando decidi fazer uma lista dos trinta livros mais importantes da minha vida, descobri que apenas metade deles eram cristãos. E, se o assunto é ciência, um de meus autores preferidos é tão distante de mim quanto estava Chesterton do jovem ateu Lewis. Que afinidade eu poderia ter com um judeu inglês fortemente secularizado, homossexual, evolucionista, provável agnóstico?
Refiro-me a Oliver Sacks (1933-2015), eminente neurologista e escritor prolífico (no Brasil foram publicados pelo menos dezesseis de seus livros). O valor de sua obra reside em vários fatores: talento literário, relevância dos temas, vasta experiência clínica e de vida, amplitude de interesses, conhecimento histórico, perspicácia analítica e, acima de tudo, amor pelos pacientes cujas histórias relata e pelas pessoas em geral. Por isso Sacks pôde se tornar um grande escritor: como disse a filósofa e romancista irlandesa Iris Murdoch em A soberania do bem (São Paulo: Unesp, 2012, p. 92), “O grande artista vê seus objetos (e isso é verdadeiro mesmo que eles sejam tristes, absurdos, repulsivos e até malévolos) à luz da justiça e da misericórdia”.
Cada qualidade que mencionei no parágrafo anterior mereceria um extenso desenvolvimento, mas me contentarei em dizer que a obra de Sacks é tão importante por valorizar a pessoalidade. Como médico, ele foi um severo crítico de todas as abordagens reducionistas, objetivistas e massificadas, ressaltando o valor da individualidade, da relação atenta e cultivada entre paciente e médico. Como pensador, valorizou o contato direto com as grandes mentes do passado e considerava terrivelmente empobrecedora a suposição, muito difundida em seu meio, de que o antigo é obsoleto. Como cientista, foi um combatente vigoroso e consciente da ideia, muito mais comum que o merecido, de que ciência é um assunto essencialmente técnico, impessoal, alheio à vida interior dos pesquisadores e ao mundo da cultura.
Creio que o apreço pela pessoalidade explica sua disposição anormalmente honesta de declarar a natureza religiosa de seu compromisso com a ciência. Sacks fez isso em 1991, num texto intitulado “Recordações de South Kensington”, depois reproduzido no livro Tudo em seu lugar: primeiros amores e últimas histórias (São Paulo: Companhia das Letras, 2020). Ali ele relatou a origem desse compromisso em um episódio de sua infância, quando viu num museu uma exposição dos elementos da tabela periódica (p. 17):
Quando via a tabela periódica, eu era dominado pelo sentimento da Verdade e da Beleza – não me parecia uma elaboração humana banal, arbitrária, mas uma verdadeira visão da ordem cósmica eterna […]. Esse sentimento da grandiosidade, da imutabilidade das leis da natureza, e de como elas talvez se mostrassem compreensíveis para nós se as buscássemos o suficiente – esse sentimento se apossou inelutavelmente de mim quando eu era um menino de dez anos, diante da tabela periódica no Museu de ciência de South Kensington. Ele nunca me deixou e, cinquenta anos depois, não perdeu o brilho, continua o mesmo. Minha fé e minha vida foram definidas naquele momento: meu Pisga, meu Sinai, surgiu em um museu.
Tal episódio ilustra algo que muitos materialistas científicos têm dificuldade de perceber: o compromisso religioso não só está presente na ciência, mas também a precede. Agostinho não foi o único a “crer para compreender”. Afinal, um menino de dez anos não tem conhecimento suficiente para justificar sua fé na ciência. Sacks era um homem autoconsciente o bastante para saber disso e corajoso o bastante para dizê-lo, contra os preconceitos de nossa época. Sua linguagem é intencionalmente religiosa, bem como o sentimento e o compromisso que ela exprime. Aí não existe neutralidade, e nunca existiu. O deus de Sacks era a ordem da natureza ou, antes, a capacidade humana para entendê-la e fazer bom uso disso em proveito próprio.
A despeito de suas qualidades excepcionais, Sacks sempre cultivou um grau considerável de cientificismo. Mas viveu o suficiente para sentir, embora não para admitir, a falência desse ídolo. Ciente de estar em suas últimas semanas, Sacks escreveu o texto “A vida continua”, publicado depois no mesmo livro, no qual refletiu sobre a triste condição humana e seus temores em relação ao futuro da raça. Mas concluiu (p. 229, destaques meus):
Tenho veneração por bons textos, pela arte e pela música, mas me parece que apenas a ciência, auxiliada pela decência humana, pelo bom senso, antevisão e preocupação com os desvalidos e os pobres, oferece alguma esperança ao mundo em seu presente atoleiro. […] Agora que me vejo diante de minha partida iminente do mundo, tenho de acreditar que a humanidade e o nosso planeta sobreviverão, que a vida continuará e que esta não será nossa hora final.
É impossível para mim não me entristecer diante desse esforço de esperança, tão frágil justamente porque um tanto consciente de sua fragilidade. Entristece-me sobretudo por haver aí aquela mesma disposição claramente religiosa, uma esperança de redenção irracional e idólatra, mas que evidencia a persistência da imagem de Deus no coração desse homem notável.
Até onde sei, Sacks nunca se reconciliou com o Autor das leis da natureza. A Bíblia está cheia de advertências contra a inutilidade de fazer imagens de ouro, prata e outros materiais. Existem hoje opções muito mais sofisticadas, mas um bezerro feito de todos os elementos químicos reunidos ainda é um ídolo. E ídolos sempre decepcionam no final.