O governo na igreja

Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina. Este texto contém excertos do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, autoria de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina [3ª Ed. Rev. e ampl. São Paulo, Vida Nova.].

Preste atenção no título, antes de tudo! É governo na igreja e não da igreja. Quando falamos “na” igreja o assunto é governança eclesiástica e quando usamos o “da” igreja, o assunto é a relação do poder religioso com o político. Nestes termos abordaremos o funcionamento interno do governo na igreja. Assim, governança na igreja guarda relação com a governança administrativa e imanente da organização religiosa, sem esquecer que, para os cristãos, a igreja, antes de ser uma instituição secular dotada de personalidade jurídica, é uma instituição divina que tem como líder supremo Jesus Cristo, sendo seu próprio corpo na terra! É o que o apóstolo Paulo escreveu à igreja de Éfeso: “Porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo” (Ef 5.23). Na mesma linha, as organizações religiosas que não professam a fé cristã também possuem em um ser transcendental sua liderança máxima, invariavelmente.

Assim sendo, passamos a falar resumidamente dos três principais sistemas de governança administrativa das organizações religiosas, que impactam diretamente na elaboração do Estatuto Social, sua principal norma canônica. Um dos sistemas mais antigos do mundo ocidental de governança da igreja é aquele em que se organiza a Igreja Católica Apostólica Romana, que tem como seu líder maior o Supremo Pontífice, o papa. Curiosidade interessante é que a alta hierarquização existente na Igreja Católica, característica do sistema episcopal, teve como fonte primária a obra “Hierarquia Celeste” de Dionísio Pseudo-Aeropagita, autor do início da Escolástica, citado mais de 1.700 vezes por Tomás de Aquino e mais de 300 vezes por Martinho Lutero. Fica a dica de leitura. Voltando para o nosso assunto, outros exemplos do sistema episcopal são os das igrejas ortodoxas e das igrejas anglicanas. Neste sistema de governança eclesiástica, o líder da igreja, comumente denominado de bispo, tem em si toda a autoridade e poder decisório sobre toda a vida imanente e transcendente da igreja.

Muitas vezes o mandato dessa autoridade é perpétuo e ela detém o poder de nomeação e remoção dos líderes abaixo de si. A hierarquia desse sistema é fortemente estruturada, com vários níveis de autoridade e de chefia, sempre dependendo da tradição eclesiástica. Hodiernamente, a Igreja Universal do Reino de Deus é um exemplo desse sistema. No sistema episcopal, os fiéis da igreja que adota esse sistema não são considerados membros, mas congregados, sem quaisquer poderes de decisão ou participação de qualquer procedimento administrativo. A única participação do fiel é de natureza espiritual, em suas liturgias, como ensina Marcos Soler:

Na maioria das organizações que adotam o sistema episcopal, os fiéis não são considerados membros, mas apenas congregados, não tendo qualquer compromisso legal para com a associação, até porque não participam do processo decisório. Existe apenas obrigação de natureza religiosa, em razão da fé[i].

Outro sistema de governança comum é o sistema presbiteral, nascido da Reforma protestante em oposição à centralização do poder papal e, consequentemente, ao sistema episcopal de governança. Preocupado com a máxima de que o poder corrompe (como ensinava Lord Acton: “O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”), esse sistema tem como norte a democracia no seio da igreja, mediante um conselho de presbíteros ou anciãos.

Da igreja local até a assembleia geral da igreja, contam com a presença de conselhos, cada um em sua esfera de governança, colegiados estes que são eleitos pelo seu quórum, compostos cada qual pelos seus representantes. Por exemplo: a igreja local possui um conselho de presbíteros que é eleito pelos seus membros e assim sucessivamente nos órgãos superiores até alcançar o Supremo Concílio. “No sistema presbiteral, a autoridade espiritual é divindade com o presbitério local, sendo que há relativa autonomia da filial (igreja local). O presbitério tem o poder decisório compartilhado com a cúpula da organização[ii]”.

As decisões da igreja são tomadas pelo Presbitério ou Conselho que o exerce em representação aos seus membros, sendo que esses se dividem em membros efetivos, que podem votar e ser votados, e membros efetivos, que não possuem qualquer participação na administração eclesiástica da igreja. Exemplo clássico é a Igreja Presbiteriana, como seu próprio nome diz. Outro exemplo são os Testemunhas de Jeová, que possuem num conselho de anciões a sua administração.

Ainda, temos o sistema de governo eclesiástico congregacional, alias o mais comum no Brasil, em que os membros da organização se reúnem em assembleia para decidir os mais variados assuntos da igreja, inclusive eleger sua diretoria administrativa, vender e comprar imóveis, aprovar relatórios, abrir departamentos, entre outros assuntos. Há total descentralização do poder decisório nesse modelo.

Os fiéis são admitidos como membros por meio do batismo ou outro ato litúrgico, mas também são recebidos em assembleia, quando oriundos de outras denominações que comungam do mesmo credo, podendo votar e serem votados (nos termos do Estatuto), ou seja, além do vínculo espiritual, todos os fiéis também possuem um vínculo canônico-jurídico com a organização. Nesse sistema, o presidente da igreja ou parte de seus membros convoca uma assembleia, nos termos de seu estatuto social, para submeter assuntos importantes, tanto de cunho espiritual quanto administrativo, à assembleia, que aprova ou não, conforme quórum previamente estabelecido em seu estatuto social.

Dentro desse modelo, as organizações religiosas locais são totalmente independentes e não se submetem a autoridades eclesiais superiores. Geralmente se reúnem em convenções com laços de fraternidade apenas para unidade de doutrina espiritual, auxílio mútuo e promoções de missões transculturais[iii].

Exemplos são as igrejas batistas e congregacionais. Por fim, ainda existem organizações religiosas que adotam um misto desses três sistemas, adaptando suas características à sua realidade de crença e fé. É muito comum um misto entre o sistema presbiteral e congregacional, por exemplo. Esse é um “resumão” de como funciona o governo na igreja, caso queira conhecer mais, temos três aulas gratuitas em nosso canal Direito Religioso, na playlist: governança eclesiástica, acesse lá!


[i] Soler, A igreja e o Direito brasileiro (São Paulo: LTr, 2010), p. 77.

[ii] Ibidem, p. 78.

[iii] Ensina Soler: “Evidentemente, para que a igreja local mantenha características da denominação religiosa a qual é filiada, há um compromisso de natureza doutrinária com convenções regionais, Associações de igrejas e assemelhados, de caráter cooperativo, e não de subordinação. Tal compromisso associativo é descrito no estatuto da organização, bem como nos estatutos das organizações regionais”, A igreja e o Direito brasileiro, p. 79.