O tal do clima de Natal

A luz do mundo entrou no mundo e dissipou a escuridão e eu vou encher a minha casa de pisca-piscas.

“Tempo de Natal! Sem dúvida, há de ser um misantropo o homem em cujo peito o retorno do Natal não faz nascer uma espécie de sentimento jovial — em cuja mente não desperta nenhuma associação agradável.” —Charles Dickens

O tal do clima natalino. Ele já passou por aí? Não negue! Certamente passou brilhando, mesmo que seja com decoração usando luzes roxas bregas; passou cantando, mesmo que tenha sido com Simone; passou com pessoas mais alegres, passou com cheiros de comidinhas especiais ou com polêmicas eternas que envolvem as uvas passas; passou com pessoas mais generosas e familiares planejando uma noite em que todos estarão juntos de novo.

Eu estava aqui lendo o conto Festas de Natal do Charles Dickens, no livro Um cântico de Natal e outras histórias. Nesse breve conto, que inicia a edição (linda edição, aliás), Dickens nos convida à tradição dos dias que envolvem o Natal. Fui tomada de nostalgia. “Quem poderá permanecer insensível aos bons sentimentos generosos e à honesta troca de carinho e afeto, tão abundantes nesta época do ano?”, o tal do clima natalino, o “esforço racional de boa vontade e alegria” de todos. Ainda não terminei o livro, mas precisei aproveitar que estou nesse clima natalino lendo Dickens. Terminei de ler Mary Poppins recentemente e também finalizei o livreto sensacional O nascimento do Rei, de P. Andrew Sandlin, para vir aqui falar rapidamente do tal do clima de Natal.

“Parece haver mágica na simples palavra Natal.” —Charles Dickens

Todos os povos, línguas e nações têm celebrações. Todas as culturas estão permeadas por festejos. Celebrar, festejar, comemorar, enaltecer, louvar, glorificar, exaltar! O Natal diz respeito ao nosso instinto criacional de nos alegrarmos quando algo bom acontece. Alegremo-nos, Jesus nasceu! Festejemos muito, Deus não nos abandonou com nosso pecado. Celebremos com júbilo, Deus proveu o Salvador para redimir seu povo. Louvemos o Senhor, Ele nasceu! Nasceu para morrer, veio para esta hora, tirou o pecado do mundo com sangue santo e ressurgiu. Exaltemos com fervor, Ele nasceu, Ele morreu morte de cruz, Ele ressuscitou e Ele vive.

E Ele nasceu. A encarnação é o primeiro passo no cumprimento de sua missão. É curioso como nos livros, tantas vezes, um humilde início pode resultar em coisas tão grandiosas. No Hobbit, por exemplo, a história começa de forma singela: “Num buraco do chão vivia um Hobbit.” Um começo humilde, com aventura, tesouros, amigos e mesmo os perigos trazidos por um dragão antigo.

O começo da história da redenção também é humilde. Numa manjedoura em Belém nasceu um menino. Um casal pobre, fora de sua cidade, buscando abrigo para atender a uma ordem dada por um burocrata romano a milhares de quilômetros de distância. Para quem já conhece a história toda, lembrar do início humilde é um deleite, lembre! Sabemos que daquela manjedoura encontraremos muitas histórias, poder, amigos, tesouros e mesmo os perigos trazidos por um dragão.

Ler o começo do Hobbit me faz celebrar, pois eu sei o que vem depois. Lembrar do início da obra de Cristo, o Natal, tem efeito ainda maior, pois não é uma mera história. É a recriação da própria história do mundo a partir de um bebê.

Ele veio ao mundo como homem para viver como homem em tudo, mas não pecando. Não devemos comemorar o nascimento do único Rei? P. Andrew Sandlin responde a essa pergunta no livreto O nascimento do Rei.

Sabemos, é claro, que o pecado é capaz de distorcer e modificar bons elementos, que é o que faz com todas as coisas. É óbvio que o Natal sofre distorções. O ser humano ama transformar as coisas boas de Deus em coisas ruins. No romance Silmarillion, que discorre, entre outras coisas, sobre a criação do mundo, Tolkien nos mostra como Melkor, o vilão da história, tenta desvirtuar a melodia que Deus está usando para fazer o mundo por meio de frases dissonantes, como se fosse uma serpente no belo jardim.

Essas distorções nos impedem de desfrutar da festa? Essas distorções devem nos tornar Grinches, como diz um amigo? Ok, estaremos com tios que nunca ligam para Cristo falando em manjedouras, primos que vivem em dissolução, pensando na família. Mas como ficar insensível? Vamos focar no erro ou pensar em como temos ali distorções que podem, com esforço, apontar para a verdade? Como explica Sandlin:

“O mundo comercializa, seculariza e prostitui a celebração do nascimento de Cristo. Os modernistas o transformam em nada mais que um feriado secular. Essa mudança é abominável. Todavia, a solução do problema não é deixar de celebrar o Natal. A solução é celebrá-lo com correção.”

Assim como não deixamos de ir à praia porque as pessoas fazem besteira nela, assim como não deixamos de comer comida de Natal porque alguns colocam passas em tudo, assim como não deixamos de cantar músicas da época só porque (spoiler alert) Papai Noel não existe, não temos por que abandonar a festa por conta do mau uso.

Ele nasceu! Cristo regenera. Ele recria. Ele nasce e começa o processo de fazer tudo novo. O que é o clima de Natal se não o homem sendo o que foi criado para ser: imagem de Deus? Sendo lembrado de quem é e o que Deus precisou fazer para que ele tivesse nova vida. Deus criou todo o mundo para sua própria glória e, mesmo após a queda, tudo ainda aponta para glória de Deus. No clima do Natal todos estão cantando canções como Joy to the world e Deus está sendo glorificado nisso. No clima do natal há mais uma clara manifestação, do que João Calvino chama de semen religionis, o fato de que todo ser humano, mesmo os rebeldes contra Deus, são seres religiosos. O Natal permite ao homem experimentar algo que aponta para fora de si mesmo, para uma realidade superior — seus tios estão fazendo isso. Perdemos tempo ao tentar demonizar o Natal; Satanás é destituído de todo poder criativo, como diz sabiamente Kuyper. Ele apenas distorce. Ao invés de irmos contra, podemos focar em usar a força cultural do Natal para apontar na direção correta. Vamos aproveitar que, nesta época, os corações estão mais comovidos, as pessoas estão mais propensas a aceitar convites para ir ao culto, e usar isso em favor do evangelho.

“Se o que celebramos é bíblico, honra a Cristo e é santo, estamos livres para celebrar. Por isso celebramos o Natal. Honramos o nascimento do Senhor.” —Sandlin

A luz do mundo entrou no mundo e dissipou a escuridão e eu vou encher a minha casa de pisca-piscas. Eu vou aproveitar o tal do clima de Natal para encher a casa dos meus pais de cheiro de bolos e ver toda a família, com suas diferenças, reunida festejando. Vou presentear os amigos e familiares sim, e vou retirar esses presentes debaixo de uma linda árvore de Natal cheinha de bolas brilhantes que minha mãe montou com tanto amor: é o que fazemos quando estamos comemorando e festejando. Vou ler livros que se passem na época de Natal e que de preferência tenham neve e muita alegria (já deixo como dica Mary Poppins). Vou me concentrar naqueles minutos com pessoas cristãs e não cristãs da família, aproveitar o esforço racional da boa vontade geral, para lembrar a eles que toda a nossa alegria nesta noite é porque Cristo veio ao mundo para tirar o pecado do mundo através da sua morte. E todos vão ouvir e respeitar, porque todos eles sabem, em algum nível, os meus familiares e os seus, e todo o mundo sabe, que vivem no mundo criado por Deus e tudo o que fazem é para Deus.

“Na época do Natal celebremos a Jesus, o Filho de Deus com ousadia: ele veio ao mundo para salvar pecadores por meio de sua morte expiatória e ressurreição vitoriosa.” —Sandlin

Redima o seu natal e celebre com alegria.


Publicado originalmente no Literatura & Redenção.