Um blog do Ministério Fiel
O Deus de existência verdadeiramente conhecível
Há provas da existência de Deus?
As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de Deus”, antes, nos apresentam um Deus que fala e age. A Bíblia parte do pressuposto da existência de Deus. Deus é o Senhor. Ele é um ser necessário e concreto.[1]
Muito do seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria, sustenta e transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).[2] Antes de tratar da matéria, as Escrituras iniciam com o Deus que cria e depois, narra o que realizou.
As primeiras palavras das Escrituras fornecem o fundamento de toda a nossa compreensão teológica. No primeiro verso de Gênesis temos uma profunda proposição ontológica e epistemológica. A negação dessa declaração revelacional: “No princípio, Deus” -, acarreta um caos em nossa epistemologia, possibilitando a fabricação de um deus esvaziado de seu poder e glória, produto de nossa imaginação[3], o que pode pavimentar o caminho para um total ateísmo.
A idolatria é a carência de Deus em rebeldia contra o Deus das Escrituras revelado em Cristo. Um teísmo sem Cristo é uma religião vaga, sem sentido, desprovida de significado e sem salvação. Por sua vez, o caminho natural da idolatria não é um teísmo, ainda que vago, mas, o deísmo ou ateísmo.
Um dos fundamentos da doutrina cristã é a certeza de que cremos em um Deus soberano,[4] Todo-Poderoso[5] que nos ama e se dá a conhecer pessoalmente a nós.
Sem a revelação de Deus seria impossível crer ou falar de Deus.[6] No entanto, nós podemos conhecê-lo genuína e pessoalmente. Exulta o salmista: “Conhecido (yada’)[7] é Deus em Judá; grande (gadol) (= supremo),[8] o seu nome em Israel” (Sl 76.1).
O Senhor, em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza e existência, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos e a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.
Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se distingue da matéria criada. Ele, somente Ele, é necessário, essencial, eterno e absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é contingente e essencialmente sustentada para que possa existir.
Há também uma diferença epistemológica porque os escritores bíblicos não estão preocupados em explicar, argumentar, provar ou demonstrar a existência de Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso.[9] Todo o conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.
Transcendência e imanência
Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, também afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre (que nos é inacessível) e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção dessa realidade por meio deste Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.
A Bíblia ensina essas duas verdades da existência de Deus:
1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.
2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especial e qualitativamente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28. Calvino exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”.[10]
Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.
Quando voltamos ao livro de Gênesis, vemos em Adão o conceito de pecado, limitação, transitoriedade e, paradoxalmente, o desejo de ser igual a Deus; portanto, presunção e arrogância.
Quando contemplamos a cruz de Cristo, vemos o Deus encarnado em sua existência, o Senhor glorioso e o Servo sofredor, onde há plenitude de conhecimento e de sabedoria (Cl 2.3) que ultrapassam totalmente a nossa capacidade de compreensão.
Por maravilhosa graça, podemos então ter um verdadeiro conhecimento de Deus e da realidade. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de que há um mundo real e que este mundo é acessível. Não enxergamos simplesmente miragens, antes, temos contado com a realidade que é autoevidente. Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam por questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo, conhecer e chegar a um grau bastante consistente de senso-comum.
Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, submeter as nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade.
A ciência é transitória, justamente transitória por ser uma ciência humana, em construção e depuração.[11] No entanto, talvez falte a ela a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[12]
Para saber mais sobre este assunto, recomendas a série Eu sou, de Heber Campos, disponível em 5 volumes, da Editora Fiel.
[1] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 72.
[2]“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).
[3] “Tanto nas épocas antigas como hoje, os ídolos se conformam à imaginação de quem os cria. Os ídolos têm, com o verdadeiro Deus, semelhanças o bastante para serem plausíveis, mas diferem no sentido de que nos deixam confortáveis e com a satisfação de manipular os substitutos que construímos” (Vern S. Poythress, Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 20-21). “Essa é a essência da idolatria: substituir a realidade por uma imitação. Distorcemos a verdade do Senhor e reconfiguramos nosso entendimento acerca dele de acordo com nossas próprias preferências, ficando com um Deus que é tudo, exceto santo” (R.C. Sproul, A santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205).
[4] “33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).
[5] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
[6]“A revelação cristã não é somente necessária para que se possa crer no Deus da religião cristã, como também não tem sentido imaginar que se possa conhecer a existência desse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação” (Étienne Gilson, O Filósofo e a Teologia, São Paulo; Santo André, SP.: Paulus; Academia Cristã, 2021, p. 88).
[7]([d;y”) (yada’). Este conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7; 25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14), ver (Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8); perfeito conhecimento (Sl 37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3); conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3); intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18); compreender (Sl 73.16); aprender (Sl 78.3); ensinar (Sl 90.12); fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).
[8] Para um estudo mais exaustivo do uso da palavra e de suas variantes, vejam-se: M.G. Abegg, Jr., Gdl: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 798-801; Jan Bergman, et. al., Gâdhal: In: G.J. Botterweck, Helmer Ringgren, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdamans, 1977 (Revised edition), v. 2, p. 390-416. (Para os nossos objetivos, especialmente, as páginas 406-412).
[9]Ele é “independente e verdadeiramente autopoderoso”, sintetiza Turretini. (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 334). Do mesmo modo, veja-se também a p. 547. Veja-se o instrutivo e edificante capítulo de MacArthur: John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 91-107.
[10] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.
[11] Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K.R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O Realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).
[12]Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21. À frente: “A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20). Para uma abordagem mais amplo desse assunto. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Uma fé que investiga e uma ciência que crê, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2020.