O Senhor Deus da Aliança

Gracioso, Misericordioso e Fiel

A bondade é uma expressão do Deus que é bom em si mesmo (Mc 10.18).[1]

Davi retratando a maldade humana, enfatiza a preciosa misericórdia de Deus (Sl 36.7)[2] que se manifesta em atos de bondade para com todos. Declara então: “A tua benignidade (hesed), SENHOR, chega até aos céus, até às nuvens, a tua fidelidade” (Sl 36.5).

É  comum nas Escrituras encontrarmos diversos servos de Deus clamando pela misericórdia, bondade, benignidade ou graça de Deus. Eles se apresentam diante de Deus sem nenhum tentativa de barganha visto que sabem que nada tem a oferecer. (Sl 31.9, 21; 69.16; 89.1;[3] 100.5; 103.13; 109.26; 138.8).

Atributo mais evidente em sua relação conosco

A misericórdia de Deus é um dos atributos mais evidentes em sua relação conosco, homens pecadores. Os salmos estão repletos dessa compreensão (Sl 84.11; 103.17; 145.8-9).[4]

Calvino está certo ao afirmar: “Os homens se acham num deplorável estado a menos que Deus os trate misericordiosamente, não debitando seus pecados em sua conta”.[5]

Analisemos alguns aspectos da misericórdia de Deus:

A. A Misericórdia Pactual

O Antigo Testamento emprega duas palavras que mais especificamente se adéquam aos conceitos de “graça” e “misericórdia” expressos no Novo Testamento. As palavras são: hesed e hen. Aqui nos ateremos à primeira palavra.

Hesed, cuja etimologia é obscura,[6] pode ser traduzida por “bondade”, “graça”, “benevolência”, “benignidade”, “clemência”, “beneficência”, “humanidade” (ARA. 2Sm 2.5), “fidelidade” (ARA. 2Sm 16.17) e “misericórdia”. Ocorre cerca de 250 vezes no Antigo Testamento, principalmente nos Salmos (127 vezes).

Figuradamente, Deus é chamado de “Misericórdia” por Davi: “Minha misericórdia (hesed) e fortaleza minha, meu alto refúgio e meu libertador, meu escudo, aquele em quem confio e quem me submete o meu povo” (Sl 144.2).

Hesed pode ser empregada acerca de Deus e acerca do homem. Quando a palavra se refere ao homem, reflete o seu amor para com o seu próximo e para com Deus. Quando a palavra é aplicada a Deus, denota a sua graça, envolvendo dois elementos importantes:

                  1) A autoentrega de Deus a Israel na relação de um pacto[7]

A ideia principal é a de que Deus manifesta o seu amor ativamente na forma de uma relação pactual; é um “amor consistente”.[8]

Hesed é um “amor de Pacto” (Dt 7.9,12; Jr 31.3);[9]Hesed da aliança”;[10] “comportamento correto segundo a aliança”.[11]

O Pacto de Deus é unilateral no que concerne às suas demandas e provisões. Compete ao homem aceitá-lo ou não; porém, não pode modificar os seus termos. O Hesed é a causa e o efeito do Pacto. Deus fez o Pacto por misericórdia; Ele revela a sua misericórdia de acordo com o Pacto (1Rs 8.23[12] [2Cr 6.14]; Ne 1.5; 9.32; Is 55.3; Dn 9.4).

2) Está associada à justiça de Deus

O Hesed de Deus não é barato. Deus não age movido por um sentimento incontrolável e incoerente; antes, encontra um justo caminho para estabelecer uma relação sólida com o homem pecador sem omitir a condição pecaminosa do homem nem baratear a sua justiça.

O fundamento desta nova relação é o próprio Cristo. A manifestação da justiça é, concomitantemente, a expressão da sua graça.[13] A graça de Deus nunca é barata nem inconsequente.

Devido ao seu Hesed, Deus voluntariamente elege o seu povo, mantendo-se fiel nesta relação independentemente da fidelidade circunstancial dos seus eleitos (Dt 7.6-11;[14] 2Sm 2.6; Sl 36.5; 57.3; 89.49; Is 54.10; 55.3).

B. A Misericórdia de Deus em sua relação conosco

A graça nos fala de um favor imerecido. A misericórdia realça a miséria daqueles que são olhados com favor da parte de Deus. Portanto, ambos os conceitos se completam.

Misericórdia em ação

No grego, a misericórdia é um sentimento provocado pela percepção da dor dos demais, manifestando-se em atos de bondade.

Misericórdia é um sentimento que se concretiza em atos condizentes com a sua percepção. É a sensibilidade divina generosamente em ação. “Misericórdia é atender as necessidades, não apenas senti-las”, interpreta John MacArthur.[15]

“Misericórdia é amor demonstrado em favor de quem vive em desgraça, e um espírito perdoador para com o pecador. Ela abrange tanto um sentimento de bondade quanto um ato bondoso”, comenta Hendriksen (1900-1982).[16]

Amor e misericórdia

O amor independe da misericórdia, contudo esta pressupõe aquele. As relações de amor não necessitam de se expressar em misericórdia, mas, a misericórdia é uma expressão do amor que se revela quando há alguma necessidade de socorro. “O amor é constante; a misericórdia está reservada para os momentos de dificuldade. Não há misericórdia sem amor”, enfatiza John MacArthur.[17]

Graça, Misericórdia e justiça

João saúda os seus destinatários relacionando a misericórdia à verdade e ao amor: “A graça, a misericórdia (e)/leoj) e a paz, da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai, serão conosco em verdade e amor” (2Jo 3). Em Deus, a graça sempre vem antes da misericórdia.[18]

A misericórdia de Deus consiste em que seu Filho nos imputou a sua glória, levando sobre si a nossa desonrosa vergonha. Ele efetuou uma troca magnífica para nós, jamais imaginada por homem algum: Ele assumiu a nossa humanidade pecaminosa, pagou as nossas dívidas, garantiu definitivamente o nosso perdão e nos comunicou a glória de sua herança. Essa troca que nos soa totalmente injusta, é a manifestação da justiça de Deus por meio de seu Filho, revelando a sua eterna misericórdia.

Nas palavras de Bonhoeffer (1906-1945), “O misericordioso [Jesus Cristo] empresta a honra própria ao decaído e toma sobre si a sua vergonha”.[19]

A misericórdia de Deus não se digladia com a sua justiça. Deus é perfeito em tudo.[20]  Deus é o Deus da paz, havendo nele sempre a harmonia de todas as suas perfeições revestida pela sua santidade.

Na misericórdia vemos estampada a sua justiça. Deus não se esquece de sua justiça como se fosse uma “perfeição imperfeita” do seu caráter, antes, Ele a cumpre, pagando o preço de nossos pecados em amor e misericórdia, nos imputando a justiça obtida por Cristo.

Uma forma natural de pensar sobre a misericórdia é colocá-la em oposição à justiça. No entanto, este conceito está totalmente distante do ensino bíblico.

Deus não quebra a sua justiça por amor, antes, cumpre a justiça em amor. A graça reina pela justiça (Rm 5.21).[21] O amor de Deus não desconsidera o pecado, antes o penaliza em Cristo, o Amado (Ef 1.6-7),[22] em quem temos a plenitude da graça do Deus Triúno. “De fato a graça reina, mas uma graça reinante à parte da justiça não é apenas inverossímil, mas também inconcebível”, sumaria Murray (1898-1974).[23]

Nossa escala volátil de valores

Este tipo de raciocínio é-nos naturalmente estranho porque temos, costumeiramente, nossa hierarquia de valores com as suas prioridades próprias que tendem a ser voláteis conforme determinadas circunstâncias.

Assim sendo, ao mesmo tempo em que sustentamos com razão a necessidade de justiça, em outras circunstâncias, quando, por exemplo, nosso filho ou amigo esteja envolvido, é possível, que com a mesma sinceridade anterior sustentemos a necessidade de sermos misericordiosos e acusarmos uma postura diferente de “legalista”.

Somos pecadores e finitos. A finitude não é pecado, no entanto, revela a nossa limitação como criaturas. Esta limitação agravada pelo nosso pecado se expressa em nossas contradições e incoerências. No entanto, somente Deus é perfeito e, por isso, o seu agir se harmoniza de forma perfeita com todos os seus atributos.

Deus é perfeito em suas perfeições não havendo hierarquia em seu ser. Obviamente a compreensão adequada dessa realidade escapa à nossa compreensão, no entanto, podemos ter a certeza de que Deus é perfeitamente santo e que a santidade permeia todas as suas ações e obras.

Cristo satisfez as exigências de modo perfeito

Desse modo, somente Jesus Cristo – o Deus encarnando – por meio da sua justiça obtida na sua encarnação, morte e ressurreição, poderia satisfazer as exigências de Deus para a nossa salvação.

Paulo escreve: “Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24).

Portanto, “Quando Deus justifica pecadores à base da obediência e da morte de Cristo, está agindo com toda equidade. Dessa maneira, longe de comprometer Sua retidão judicial, esse método de justificação em realidade a exibe” enfatiza Packer.[24]

Nosso estado deplorável

A Palavra de Deus demonstra que todos nós, sem exceção, nos encontramos em um estado deprimente, totalmente dominados pelo pecado, distantes de Deus.[25] Somos carentes da sua misericórdia. Deus nos trata com misericórdia, não debitando em nossa conta a nossa dívida, a qual jamais poderíamos pagar, antes, a inflacionaríamos ainda mais.[26]

No entanto, o pecado nos aprisiona nos dando uma falsa sensação de satisfação completa e durável. Ele nos anestesia produzindo em nós um aparente bem-estar. O fato é que, dominados pelo pecado, não conseguimos enxergar a nossa miséria.

Calvino (1509-1564) escreve com propriedade: “Imaginamos que Deus nos é favorável porque nos tem considerado dignos de seu respeito. A Escritura, porém, por toda parte enaltece sua misericórdia, que pura e simplesmente abole todo e qualquer mérito”.[27]

Necessitamos buscar a Deus diante do trono da sua misericórdia para que possamos ter a bênção da bem-aventurança que começa por nossa reconciliação com Ele. Somente assim encontraremos o antídoto para as nossas misérias espirituais.

Misericórdia x merecimento

Deus não devia misericórdia a ninguém. Misericórdia merecida seria uma contradição de conceitos.[28] Da mesma forma, graça obrigatória seria uma negação da graça. Uma contradição é em sua essência ininteligível. A fé cristã comporta mistérios, porém, não contradição.[29]

Misericórdia sempre pressupõe a indignidade daquele que a recebe.

Enquanto a graça ressalta a grandeza de Deus em relação aos homens; a misericórdia retrata como o Deus majestoso vem ao nosso encontro, em nossa miséria espiritual, nos perdoando os pecados restaurando-nos à comunhão com Ele por meio de seu Filho, Jesus Cristo.

Deus se relaciona conosco em misericórdia. Ele é pleno de seus atributos; portanto, rico em misericórdia por causa do seu grande amor (Ef 2.4):[30]

“Eis que temos por felizes os que perseveraram firmes. Tendes ouvido da paciência de Jó e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo (Tg 5.11).

A misericórdia de Deus, por sua vez revela também a nossa miséria. Só pode haver misericórdia, justamente por carecer dela, para com os miseráveis.

O salmista atento à obra de Deus, conclama: “Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia (hesed) dura para sempre” (Sl 118.1 = Sl 106.1; 107.1, etc.).

Relacionamento por misericórdia

Aqui há a compreensão de que toda a nossa relação com Deus se baseia em sua misericórdia.

Após a destruição de Jerusalém, Jeremias escreve: “As misericórdias (hesed) do Senhor são a causa de não sermos consumidos porque as suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22).

Tudo que somos e temos pode ser resumido na “misericórdia eterna de Deus”, que se compadece de nós e propicia a nossa salvação.

No salmo 130 encontramos o salmista em uma situação extrema. Ele não se ilude com soluções humanas. Nenhuma metodologia de autoajuda o pode socorrer. Por isso, pode dizer do mais profundo de seu coração, das “profundezas” de sua situação: “Clamo a ti, Senhor” (Sl 130.1).

Ele sabe perfeitamente a quem se dirige. A sua experiência compartilhada é de esperar em Deus visto que ele é o Deus misericordioso:

6 A minha alma anseia pelo Senhor mais do que os guardas pelo romper da manhã. Mais do que os guardas pelo romper da manhã, 7 espere Israel no Senhor, pois no Senhor há misericórdia (hesed); nele, copiosa redenção. (Sl 130.6-7).

Nas Escrituras fica evidente que os servos de Deus sempre tiveram um conceito claro e abrangente de alguns importantes aspectos da sua misericórdia. Vejamos alguns testemunhos:

                        a) A bondade do Senhor está espalhada por toda Terra.

“Ele ama a justiça e o direito; a terra está cheia da bondade do SENHOR” (Sl 33.5). (Do mesmo modo: Sl 119.64).

                        b) A misericórdia de Deus é eterna.

O salmista pede a Deus que em sua lembrança olhe para Ele com misericórdia, não considerando os pecados de sua juventude.

Lembra-te, SENHOR, das tuas misericórdias (racham) e das tuas bondades (hesed), que são desde a eternidade. Não te lembres dos meus pecados da mocidade, nem das minhas transgressões. Lembra-te de mim, segundo a tua misericórdia (hesed), por causa da tua bondade (tub), ó SENHOR. (Sl 25.6-7).

“Ao único que opera grandes (gadol) maravilhas (pala), porque a sua misericórdia (hesed) dura para sempre” (Sl 136.4).

No Salmo 31, Davi pôde expressar a Deus o seu contentamento reconhecendo a bondade de Deus: “Como é grande a tua bondade (tub), que reservaste aos que te temem, da qual usas, perante os filhos dos homens, para com os que em ti se refugiam!” (Sl 31.19).

                        c) Davi pede a Deus que o livre, o salve pela sua misericórdia

  “…. salva-me por tua graça (hesed) (Sl 6.4). (Do mesmo modo: Sl 31.16).

                        d) O salmista reconhece como a misericórdia de Deus nos acompanha

Por isso, expressa o desejo de que assim permaneça. Em última instância a nossa confiança deve estar sempre em Deus não em nossas supostas habilidades ou circunstâncias favoráveis. Deus é o Senhor do tempo, das circunstâncias e da eternidade. Faremos muito bem se aprendermos a confiar nele, aquela que nos acompanha sempre (Sl 33.12-17).

18 Eis que os olhos do SENHOR estão sobre os que o temem, sobre os que esperam na sua misericórdia (hesed), 19 para livrar-lhes a alma da morte, e, no tempo da fome, conservar-lhes a vida. 20 Nossa alma espera no SENHOR, nosso auxílio e escudo. 21 Nele, o nosso coração se alegra, pois confiamos no seu santo nome. 22 Seja sobre nós, SENHOR, a tua misericórdia (hesed), como de ti esperamos. (Sl 33-18-22).

“Bondade e misericórdia (hesed) certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do SENHOR para todo o sempre (Sl 23.6).

e) A misericórdia de Deus é preciosa e, aqueles que a reconhecem, refugiam-se em Deus

“Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! (hesed) Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas” (Sl 36.7).

f) Davi sabe que o seu culto a Deus é resultante da riqueza da misericórdia de Deus.

“…. eu, pela riqueza da tua misericórdia (hesed), entrarei na tua casa e me prostrarei diante do teu santo templo, no teu temor” (Sl 5.7).

O nosso culto a Deus é sempre uma expressão da graça de Deus. Deus se dá a conhecer e nos capacita a nos relacionar com Ele em amor, fidelidade e obediência.

No Novo Testamento Paulo roga aos irmãos que, considerando as misericórdias de Deus, se ofereçam integralmente como um culto agradável a Deus: Rogo-vos (suplicar, exortar, solicitar, chamar), pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm 12.1).

                        g) Deus responde as nossas orações devido à sua misericórdia.

Quanto a mim, porém, SENHOR, faço a ti, em tempo favorável, a minha oração. Responde-me, ó Deus, pela riqueza da tua graça (hesed); pela tua fidelidade em socorrer (…). Responde-me, SENHOR, pois compassiva (tôb)[31] é a tua graça (hesed); volta-te para mim segundo a riqueza das tuas misericórdias (racham). (Sl 69.13,16).

h) Deus deseja que rendamos graças a ele

O salmista rende graças a Deus considerando as suas maravilhosas obras fruto de sua misericórdia: “Ao único que opera grandes (gadol)[32] maravilhas (pala) (admiráveis, extraordinárias), porque a sua misericórdia (hesed) dura para sempre” (Sl 136.4).Davi canta com alegria a magnificente misericórdia de Deus que se manifestou em seu livramento e alento de sua alma:

Render-te-ei graças, SENHOR, de todo o meu coração; na presença dos poderosos te cantarei louvores. 2 Prostrar-me-ei para o teu santo templo e louvarei o teu nome, por causa da tua misericórdia (hesed) e da tua verdade, pois magnificaste (gadal) acima de tudo o teu nome e a tua palavra. 3 No dia em que eu clamei, tu me acudiste e alentaste a força de minha alma. (Sl 138-1-3).

O povo de Deus, deve também fazê-lo, inclusive considerando o cuidado de Deus para com a sua Igreja conforme o seu pacto de misericórdia que preserva o seu povo ao longo da história:

Cantarei para sempre as tuas misericórdias (hesed), ó SENHOR; os meus lábios proclamarão a todas as gerações a tua fidelidade. 2 Pois disse eu: a benignidade está fundada para sempre; a tua fidelidade, tu a confirmarás nos céus, dizendo: 3 Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi, meu servo: 4 Para sempre estabelecerei a tua posteridade e firmarei o teu trono de geração em geração. (Sl 89.1-4).

i) Deus nos guarda e protege com a sua misericórdia.

Davi, sem dúvida, retratando parte de sua experiência, escreve: “Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no Senhor, a misericórdia (hesed) o assistirá (sabab)” (Sl 32.10).

A palavra assistir, que tem um amplo sentido literal e figurado, significa envolver, cercar, contornar. Apenas para ilustrar, mencionamos que esta é a palavra usada para descrever as voltas que o exército de Israel deu sobre Jericó durante sete dias (Js 6.3,4,7,11,14,15). A ideia expressa é a de que Deus nos cerca, nos envolve por todos os lados com a sua misericórdia.

O hesed de Deus é o seu incansável, fiel e misericordioso amor pactual que se revela em sua relação com o seu povo. Ele pode ser esperado, desejado e suplicado, porém, não pode ser exigido.[33] A misericórdia de Deus se manifesta de forma boa e agradável a fim de nos restaurar. Ela se relaciona com a profundidade de seu amor que se revela em atos concretos de compaixão.

No entanto, conforme já tratamos, mesmo sendo evidente a misericórdia de Deus em sua relação com o seu povo, a desconsideração leviana da bondade de Deus caracterizou a vida de Israel em diversas e contínuas situações.

Misericórdia, disciplina e arrependimento

Na disciplina de Deus, além de revelar a sua justiça, Ele tem para seus filhos, este propósito primordial: conduzir-nos ao arrependimento.

Calvino escreveu sobre isso:

Porque a Deus não Lhe basta ferir-nos com sua mão, a menos que também nos toque interiormente com Seu Espírito Santo. (…) Até que Deus nos toque no mais profundo de nosso interior, é certo que não faremos nada senão dar coices contra Ele, cuspindo mais e mais veneno; e toda vez que nos punir rangeremos os dentes, e nada mais faremos senão atacá-Lo. (…) Então vocês veem como Deus mostra Sua justiça cada vez que pune os homens, ainda que tal punição não seja uma solução para sua emenda.[34]

Temos uma boa síntese do significado bíblico de arrependimento no Catecismo Menor de Westminster, em resposta à pergunta 87: “O que é arrependimento para a vida?”:

Arrependimento para a vida é uma graça salvadora, pela qual o pecador, tendo uma verdadeira consciência de seu pecado, e percepção da misericórdia de Deus em Cristo, se enche de tristeza e de aversão pelos seus pecados, os abandona e volta para Deus, inteiramente resolvido a prestar-lhe obediência (At 11.18; At 2.37; Jl 2.13; 2Co 7.11; Jr 31.18,19; At 26.18; Sl 119.59).

A boa nova exclusiva do Evangelho de Cristo, é que há salvação para todo aquele que se arrepender de seus pecados e confessar a Cristo como Senhor. Este é sentido da mensagem vivenciada e proclamada pela igreja, como comunidade de pecadores inteiramente perdoados pela graça.

A misericórdia de Deus é uma realidade contínua em nossa existência. Contudo, ela se torna mais eloquente para nós quando tomamos consciência do nosso pecado e do perdão de Deus.

No Salmo 6, o salmista Davi, tendo pecado, arrependido, suplica a Deus: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça (hesed)(Sl 6.4).[35]

Por maiores que sejam os nossos pecados, exponhamos a Deus em oração. Não tenhamos vergonha de colocar diante de Deus as nossas angústias, temores e ansiedades. Tenhamos vergonha de pecar. Lamentavelmente tendo feito isto, arrependidos, não tenhamos vergonha de confessar a Deus a nossa transgressão rogando-lhe a graça do perdão.

Devemos ter sempre presente diante de nossos olhos que a restauração concedida por Deus à nossa vida é unicamente amparada em sua misericórdia e graça, cujo fundamento é a obra redentora de Cristo.

Esse Deus misericordioso é o nosso Pastor, que nos guia sempre com sua misericórdia em todos os lugares e circunstâncias.

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[1] “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um, que é Deus” (Mc 10.18).

[2]  “Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade (hesed)! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas” (Sl 36.7).

[3] “Compadece-te de mim, SENHOR, porque me sinto atribulado; de tristeza os meus olhos se consomem, e a minha alma e o meu corpo” (Sl 31.9). “Bendito seja o SENHOR, que engrandeceu a sua misericórdia para comigo, numa cidade sitiada!” (Sl 31.21). “Responde-me, SENHOR, pois compassiva é a tua graça; volta-te para mim segundo a riqueza das tuas misericórdias” (Sl 69.16). “Cantarei para sempre as tuas misericórdias, ó SENHOR; os meus lábios proclamarão a todas as gerações a tua fidelidade” (Sl 89.1).

[4]  “Porque o SENHOR Deus é sol e escudo; o SENHOR dá graça e glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente” (Sl 84.11). “Mas a misericórdia do SENHOR é de eternidade a eternidade, sobre os que o temem, e a sua justiça, sobre os filhos dos filhos” (Sl 103.17). 8 Benigno e misericordioso é o SENHOR, tardio em irar-se e de grande clemência.  9 O SENHOR é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras” (Sl 145.8-9).

[5] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 39. “A benevolência divina se estende a todos os homens. E se não há um sequer sem a experiência de participar da benevolência divina, quanto mais aquela benevolência que os piedosos experimentarão e que esperam nela!” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.10), p. 120-121).

[6] H.J. Stoebe, desex: In: Ernst Jenni; Claus Westermann, eds. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978, v. 1, p. 832.

[7] Vejam-se: W. Zimmerli, et. al. Xa/rij: In: G. Friedrich; G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, v. 9, p. 383ss.; Walther Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, v. 1, p. 213ss.

[8]C.E. Armerding, Misericórdia: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 4, p. 296.

[9]Van Groningen, comentando o Salmo 111.1, chama a expressão de “fidelidade pactual”; no Salmo 118.1, designa de “amor pactual” (Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 351, 363). Packer, a traduz por “Amor constante” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 88); “Amor imutável”, traduzem Baer e Gordon (D.A. Baer; R.P. Gordon, Hsd: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 209). Eichrodt, chama de “amor solícito” (Walther Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, v. 1, p. 213). Harris seguindo a versão King James, crê que uma boa tradução é “bondade amorosa” (R. Laird Harris, hsd: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 503).

[10]R. Laird Harris, ihsd: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 501.

[11]H.H. Esser, Misericórdia: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 177.

[12]22 Pôs-se Salomão diante do altar do Senhor, na presença de toda a congregação de Israel; e estendeu as mãos para os céus 23 e disse: Ó Senhor, Deus de Israel, não há Deus como tu, em cima nos céus nem embaixo na terra, como tu que guardas a aliança e a misericórdia (desex) (hesed) a teus servos que de todo o coração andam diante de ti” (1Rs 8.22-23).

[13]Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 230.

[14]6 Porque tu és povo santo ao Senhor, teu Deus; o Senhor, teu Deus, te escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a terra. 7 Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, 8 mas porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o Senhor vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito. 9 Saberás, pois, que o Senhor, teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia (desex) (hesed) até mil gerações aos que o amam e cumprem os seus mandamentos; 10 e dá o pago diretamente aos que o odeiam, fazendo-os perecer; não será demorado para com o que o odeia; prontamente, lho retribuirá. 11Guarda, pois, os mandamentos, e os estatutos, e os juízos que hoje te mando cumprir” (Dt 7.6-11).

[15] John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 120.

[16] William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.7), p. 385.

[17]John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, p. 122.

[18] Cf. R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament: The Interpretation of St. Matthew’s Gospel, [s. cidade]: Hendrickson Publishers, 1998, (Mt 5.7), p. 191

[19] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 61. “Misericórdia é o princípio eterno da natureza de Deus que o leva a buscar o bem temporal e a salvação eterna dos que se opuseram à vontade dele, mesmo a custo do sacrifício próprio” (Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 431).

[20] “A justiça de Deus nunca está separada de sua retidão. (…) Sua justiça é perfeita” (R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 121).

[21] “A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5.21). (Grifos meus).

[22]6Para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 7no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” (Ef 1.6-7).

[23] John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Cultura Cristã, 1993, p. 19. Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 180-181.

[24]J.I. Packer, Justificação: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 899b.

[25] “Todos, sem exceção, são carentes de sua misericórdia” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.6), p. 49).

[26]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 39.

[27]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.16), p. 131.

[28] “A misericórdia não é um direito ao qual o homem faz jus. A misericórdia é aquele atributo adorável de Deus, pelo qual tem dó dos miseráveis e os alivia” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: FIEL, 1977, p. 23). “É em razão de ser misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.2), p. 27).

[29] Cf. R.C. Sproul, A Mão invisível, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 82ss.

[30] “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou” (Ef 2.4).

[31]A palavra hebraica é traduzida de forma variada no AT.: Bondade (Sl 21.3; 23.6); bom (Sl 25.8; 34.9,15); bem (Sl 34.11,12; 37.3); melhor (Sl 63.3; 118.8,9); vale mais (Sl 84.10); bens (Sl 107.9). A Criação é, em seu estado original, avaliada por Deus como sendo boa (Gn 1.4,10,12,18,21,25,31). Por vezes a palavra tem o sentido estético (belo, agradável) ainda que não indique necessariamente algo bom, mas, o caminho adequado para se conseguir o que deseja ou, na mesma linha de subjetividade, o que parece bom aos nossos olhos (Gn 19.8; Js 9.25; Et 3.11; 2Rs 20.3). Tipo o “Imperativo Hipotético” de Kant, associo eu. (Para um estudo mais exaustivo do termo, vejam-se: Alan Richardson, ed. A Theological Word Book of the Bible, London: SCM Press, 13. impression, 1975, p. 99; Andrew Bowling, Tôb: In: R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr.; Bruce K. Waltke, orgs. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 564-566 (Artigo bastante didático). Robert P. Gordon, Twb: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 352-356; E. Beyreuther, Bom: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 319-327; W. Grundmann, A)gaqo/j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 1, p. 10-18; W. Grundmann, Kalo/j: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 3, p. 536-550; I. Höver-Johag, bOs: In: G. Johannes Botterweck; Helmer Ringgren, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1980 (Revised edition), v. 5, p. 296-317; Bom: W.E. Vine; Merril F. Unger; William White Jr., Dicionário Vine: o significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2002, p. 55-56 (Pequeno, porém, significativo artigo).

[32] Para um estudo mais exaustivo do uso da palavra e de suas variantes, vejam-se: M.G. Abegg, Jr., Gdl: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 798-801; Jan Bergman, et. al., Gâdhal: In: G.J. Botterweck, Helmer Ringgren, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1977 (Revised edition), v. 2, p. 390-416. (Para os nossos objetivos, especialmente, as páginas 406-412).

[33]Veja-se: R. Bultmann, E)/leoj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 2, p. 479-482.

[34]Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 48.       Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, p. 49). (Vejam-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 204; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.1), p. 250.

[35]Para um estudo mais detalhado do Salmo 6, veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Homem no Teatro de Deus: Providência, Tempo, História e Circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 367-382.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.