Um blog do Ministério Fiel
A suficiência das Escrituras
O Espírito e a Escritura - Capítulo 7
Nota do Editor: Este artigo é um recurso selecionado para a Semana da Inerrância Bíblica do Ministério Fiel e Voltemos ao Evangelho, uma semana onde estivemos, juntos com a igreja verdadeira, proclamando a inerrância, suficiência e autoridade da Bíblia, que é a Palavra de Deus. Pedimos ao nosso colunista mais assíduo do blog, o Reverendo Hermisten Maia, para escrever sobre o assunto; ele então nos presenteou com mais uma de suas séries, trazendo profundidade ao tema! Desfrute e compartilhe destes conteúdos e tenha sua fé na inerrante Palavra de Deus fortalecida!
O registro e a preservação das Escrituras são obras sobrenaturais. Nenhum livro na história foi mais atacado, fragmentado, caluniado e dissecado do que a Bíblia. No entanto, ela permanece inalterável. Deus nos ensina sobre a sua Providência por meio das Escrituras e com a própria preservação da Escritura.
Bavinck faz uma sensível analogia: “Cristo carregou a cruz, e o servo [Escritura] não é maior que seu mestre. A Escritura é a criada de Cristo. Ela partilha de sua difamação e enfrenta a hostilidade da humanidade pecadora”.[1]
Como o Autor da Escritura é o eterno e Trino Deus, os seus ensinamentos permanecem a despeito das mudanças culturais e dos valores mutáveis da sociedade em cada época.[2]
Durante toda a história da humanidade pós-queda,[3] a Palavra de Deus foi alvo dos mais diversos ataques: entre eles, o mais comum é a suposição de sua falibilidade. No entanto, um ataque mais sutil que também permeou boa parte da História da Igreja, é a concepção ainda que muitas vezes velada, de que as Escrituras não são suficientes para nos dirigir e orientar.
Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de 1520, na pequena, porém, próspera e culta cidade alemã de Zwickau – conhecida como a “pérola da Saxônia”[4] –, surgiu um grupo de homens “iluminados”, “movimento fanático”[5] – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”[6] –, que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo terem sido chamados por Deus para “completar a Reforma”.
A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados –, e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes.
Assim pensando, esses homens diziam:
De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar.[7]
Um certo alfaiate, Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.[8] Ele, acompanhado de Marcos Stübner e Marcos Tomás foram a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) –, pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stübner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los.
Melanchthon, que conversou com Stübner, interveio na questão, ainda que timidamente. Storck (1525),[9] mais inquieto, logo partiu de Wittenberg. Stübner, ex- aluno de Wittenberg, no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista; “era um momento crítico na história do cristianismo”, sumaria Atkinson (1914-2011).[10] De fato, todas as vezes que o Espírito for separado da Palavra, as esquisitices espirituais se manifestam em proporções inimagináveis e com invencionices infindáveis.[11]
Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.[12]
Isso torna completamente justificável o clamor ouvido em Wittenberg pelo auxílio de Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg[13] a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.[14] Mais tarde, Lutero escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.[15]
Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja e, tem sido extremamente perniciosa para o povo de Deus, acarretando um desvio espiritual e teológico, deslocando o “eixo hermenêutico” da Palavra para a experiência mística, nos afastando assim, da Palavra e, consequentemente, do Deus da Palavra, contribuindo para desviar a igreja de sua unidade na verdade, atributo essencial da igreja.[16] Não podemos abandonar a autoridade da Palavra de Deus para a autoridade de nossa experiência ou, de quem quer que seja, adotando-a como fundamento da teologia e, consequentemente de nossa vida.
O trágico é que justamente aqueles que supõem desfrutarem de maior “intimidade” com Deus, são os que patrocinam o distanciamento da Palavra revelada de Deus. Davi enfatiza: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Sl 25.14).
Portanto, a nossa intimidade com Deus revela-se em nosso apego à sua Palavra, à sua aliança. Nesse texto, Calvino faz uma aplicação bastante contextualizada:
É uma ímpia e danosa invenção tentar privar o povo comum das Santas Escrituras, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto, como se todos os que o temem de coração, seja qual for seu estado e condição em outros aspectos, não fossem expressamente chamados ao conhecimento da aliança de Deus.[17]
Nós somos herdeiros dos princípios bíblicos da Reforma; para nós, como para os Reformadores, a Palavra de Deus é a fonte autoritativa de Deus para o nosso pensar, crer, sentir e agir: A Palavra de Deus nos é suficiente e consideramos o Espírito como Autor das Escrituras.
Mais tarde, o teólogo Turretini (1623-1687), combatendo os fanáticos de seu tempo, falando da vocação de modo geral, enfatizou:
Ora, ainda que não duvidemos de que o sopro interno do Espírito concorra nesta vocação, isso não é suficiente, a menos que haja uma manifestação e confirmação externas, seja por uma manifestação de Deus, pessoalmente, ou por uma declaração da vontade divina, anexa a uma concordância da doutrina proposta com a doutrina revelada por Deus em Sua Palavra, para que não seja confundida com as imposturas dos fanáticos que se vangloriam do sopro e revelações divinos.[18]
[1]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 439.
[2]Veja-se: John MacArthur, Por que ainda prego a Bíblia após quarenta anos de ministério: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 135.
[3] “Os ataques contra a Palavra de Deus são tão antigos como a história do homem decaído” (Iain Murray, Como a Escócia perdeu sua firmeza na Palavra: In: John F. MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 149-171], p. 149).
[4]Eric W. Gritsch, Thomas Müntzer: A Tragedy of Errors, Minneapolis: Augsburg Fortress, 1989, p. 19.
[5] Cf. Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 61.
[6] Os principais líderes eram: Nícolas Storck, Marcos Tomás e Marcos Stübner. Tomás Münzer (c. 1490-1525), tornar-se-ia o mais famoso dos que foram influenciados por esse círculo, tendo mais tarde as suas ideias próprias, ainda que fiel aos mesmos princípios. (Veja-se: George H. Williams, La Reforma Radical, México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 66ss; Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101). Delumeau (1923-2020) diz que tal grupo considerava a teologia de Lutero do Cristo “doce como mel”, um tanto “efeminada”, contrastando com isso a rudeza da cruz (Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101).
[7]Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], v. 3, p. 64. Müntzer (c. 1490-1525) sustentava que os pastores só tinham a letra. Criticou severamente aqueles que não admitiam a revelação contínua. “Esses pastores vilões e traiçoeiros não são úteis para a igreja, mesmo na menor questão. Pois, eles negam a voz do noivo, o que é um sinal verdadeiramente certo de que são um bando de demônios. Como poderiam então ser servos de Deus, portadores de sua palavra, que negam descaradamente com a ousadia de sua prostituta? Pois todos os verdadeiros pastores devem ter revelações, para que tenham certeza de sua causa” (Thomas Müntzer, The Prague Protest: In: Michael G. Baylor, ed. Revelation and Revolution: Basic Writings of Thomas Muntzer, Bethlehem, Pa.: Lehigh University Press, 1993, p. 54-55).
Mais tarde, Calvino escreveria, possivelmente referindo-se aos “libertinos”, também conhecidos como “espirituais”: “Ora, surgiram, em tempos recentes, certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata.
“Eu, porém, gostaria de saber deles que tal é esse Espírito de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino das Escrituras? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, certeza dessa espécie é absurdamente ridícula, se, na realidade, concedem, segundo penso, que os Apóstolos de Cristo e os demais fiéis na Igreja Primitiva não de outro Espírito hão sido iluminados. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menoscabo da Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus escritos o atestam mui luminosamente…..
“… Não é função do Espírito Que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante quê sejamos distraídos do ensino do Evangelho já recebido; ao contrário, Sua função é selar-nos na mente aquela própria doutrina que é recomendada através do Evangelho” (J. Calvino, As Institutas, I.9.1). Veja-se também: As Institutas, I.9.2-3.
McNeill (1885-1975) explica que o termo “libertino” foi usado por Calvino para “designar uma seita religiosa que se espalhou na França e na Península Dinamarquesa, a qual, dando ênfase ao Espírito, rejeitava a Lei. Posteriormente, o termo veio a ser aplicado em Genebra, àqueles que se opunham à disciplina, os quais incluíam pessoas que desconsideravam a lei moral e outros, mais motivados politicamente em resistir a Calvino” (John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 169).
[8] Cf. J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], v. 3, p. 64-65; Heinrich W. Erbkam, Münzer: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, 3. ed. rev. amp. New York: Funk & Wagnalls Company, 1891, v. 2, p. 1596a).
[9]Como resultado das supostas revelações diretas de Deus, Storck e seus companheiros sustentavam que “dentro de cinco a sete anos os turcos invadiriam a Alemanha e destruiriam os sacerdotes e todos os ímpios. Storck via-se como cabeça de uma nova igreja, designada por Deus para completar a Reforma que Martinho Lutero deixara inacabada” (J.D. Weaver, Profetas de Zwickau: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 657). Storck sustentava que o saber e a aprendizagem obstruíam a inspiração divina. Seus seguidores, denominados de Abecedaristas “levaram esta teoria até o ponto de declarar que era preferível nem mesmo ter aprendido o A B C, já que todo o aprendizado humano está baseado no alfabeto, e o conhecimento disso abre as portas para aquilo que é um obstáculo à iluminação”. Esse princípio posteriormente defendido por Carlstadt, que, tendo sido aliado de Lutero, cedeu às invectivas de Storck contra o aprendizado, fechou os seus livros, renunciou ao seu título de Doutor em Teologia, abandonou os estudos das Sagradas Escrituras e buscou pela verdade divina nas bocas daqueles que, sendo homens comuns, eram considerados os mais ignorantes em toda a humanidade” (John H. Blund, ed. Dictionary of Sects, Heresies, Ecclesiastical Parties and Schools of Religious Thought, London: (s. editora), 1874, p. 1). É digno de nota que Carlstadt era um erudito versado em hebraico, grego e latim, com formação tomista, obtendo três doutorados. Foi ele quem presidiu a cerimônia de doutorado em Teologia de Lutero (1512). Quanto ao abandono de seus títulos, devemos lembrar que posteriormente, a fim de ganhar a vida, passou seus últimos anos lecionando hebraico e Antigo Testamento na Universidade de Basileia (Cf. Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 90-91).
[10]James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254.
[11]Cf. D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 68-69.
[12]J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 71.
[13]Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 83).
[14]Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja-se o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma, Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora; Editora Sinodal, 1984, p. 153-161. Quanto aos detalhes da sua volta, Vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, p. 254ss.
[15] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 334.
[16] Veja-se uma abordagem bastante esclarecedora sobre o misticismo, considerando inclusive, o seu aspecto relevante, em: Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 46-77.
[17] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 25.14), p. 558.
[18] François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 268.