Um blog do Ministério Fiel
Escrevendo ficção cristã como cristão
A importância de continuamente desenvolver sua cosmovisão bíblica
Nota do Editor: Este artigo é uma adaptação do manuscrito de uma palestra do autor que foi ministrada na FEFIC de 2023 em Belo Horizonte-MG, cujo intuito é de ajudar o crescente movimento de escritores cristãos de ficção.
Esta é uma convocação rumo ao constante crescimento. Nesta palestra quero falar sobre cosmovisão e sua importância para o desenvolvimento do escritor. E espero desafiar a todos nós acerca disso.
Ser escritor não é nada fácil. Muito menos um escritor independente. Há muito o que se estudar. Técnicas de escrita, por exemplo. Língua portuguesa. Comunicação. Técnicas de marketing digital, vendas, diagramação… Não é apenas um arquivo em branco na tela, e uma ideia na cabeça, é? Há muito que nós precisamos ter em mente; e eu venho hoje complicar sua tarefa um pouquinho. Falo com amor. Porém, creio que isso é essencial para sua ficção cristã ser, de fato, cristã. Vamos falar sobre cosmovisão, e como aprimorá-la.
Um resumo do que tenho a dizer é: Não assuma, que pelo fato de você ser cristão, você tem uma visão cristãs dos assuntos que aparecerão na sua obra.
Por que ser crente não basta? A importância de desenvolver a cosmovisão cristã
O que é cosmovisão mesmo? Podemos simplificar dizendo que são as lentes pelas quais você enxerga a realidade. A cosmovisão influencia tanto como você vê e interpreta o mundo e seus eventos, como colore também o que sai de sua boca, de sua pena, de seu teclado. Cosmovisão tem a ver com a maneira pela qual interpretamos a própria realidade, as nossas experiências, a nossa vida, a providência de Deus. De certa forma, poderíamos falar que há no mundo ao menos tantas formas de ver o mundo quanto há pessoas. Por outro lado, podemos para fins didáticos agrupar as cosmovisões em grupos maiores. Há diversos ótimos livros lidando com o tema.
Mas o assunto aqui hoje é a sua cosmovisão, e como ela vai te influenciar enquanto escritor. Quais são alguns elementos formadores de nossa cosmovisão? Rapidamente elencaremos alguns.
Família — Cada um de nós recebeu uma criação diferente. E foi na família que aprendemos questões sobre como nos portarmos à mesa, como falar com os mais velhos, como usar o dinheiro, o tempo livre, como pensar sobre felicidade. O que é uma vida boa? O que é importante na nossa vida? O que é impensável? Estas respostas passam em grande parte pelo que vimos exemplificado e ensinado no lar em que crescemos.
Cultura local e nacional — A região do país, o estado, a cidade, o bairro em que você cresceu e vive; tudo isso moldam em alguma medida como você enxerga o mundo. Há fatores formativos em nossa mente que se devem ao ambiente cultural em que fomos treinados para a vida.
Experiências — Muito do que você viveu colore o que você pensa sobre família, sobre dinheiro, alegria, sobre no que consiste um bom dia. Uma boa semana é medida como? Oque é maternidade, o que é uma boa ideia para se fazer num sábado livre?
Gostos e preferências — Quando alguém te fala que “o dia está lindo hoje ” o que te vem à mente? Nublado ou ensolarado? Perceba que não há uma definição universal disso. Passa por nossos gostos. E a ideia de passar um dia sozinho vagando por uma cidade que você mal conhece, te parece um pesadelo ou uma aventura gostosa?
Estudo — Sua mente, seu entendimento do mundo foi em alguma medida formado pelos inúmeros professores que passaram por sua vida. Bem como pelos livros e cursos, vídeos e palestras. Tudo isso moldou seu pensamento. E talvez de formas que você nem saiba. Talvez sua visão sobre a igreja, sobre o estado, sobre certo e errado sejam influenciados por seus estudos além do que você imagina.
Histórias que nos formaram — sua visão de bem e mal, de heroísmo e covardia foram em grande parte esculpidas pelas histórias que você consumiu. Não? Frases, trechos de filmes, pedaços de eventos reais ou fictícios que colorem como você vive, como você ama, luta, ou se refreia de lutar.
Seu coração — Na base disso tudo há uma questão central: se você conhece a Deus ou não. Se você tem um coração regenerado pelo Espírito de Deus, ou não. Isso vai te possibilitar ver a vida com olhos redimidos.
Obviamente, isso tudo é muito importante para o escritor, afinal, sua cosmovisão vai colorir sua história. Isso é inevitável. E nem desejamos que seja diferente. Senão nem faria sentido falarmos sobre ficção cristã. Como um cristão vê fantasia, romance, dilemas morais, relacionamentos familiares, sacrifício pessoal, metas de vida?
Tudo isso implica em dizer que queremos que sua mente cristã crie boas histórias a partir de uma cosmovisão cristã. O que precisamos é que sua cosmovisão seja intencionalmente cristã, e para isso nós escritores precisamos investir nisso.
Paulo nos ensina em Romanos 12.1,2 sobre a constante necessidade de renovação de nossa mente:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
Estamos falando da santificação de nossa mente. Paulo nos diz que à luz do que Cristo fez por nós (que é o assunto dos 11 capítulos anteriores de Romanos), devemos estar sempre moldando nossas mentes à palavra de Deus e não a este século. Ou seja, algo está sempre calibrando sua cosmovisão. Claro, todas essas coisas mencionada antes (família, experiências, etc.) são parte disso. Assim como todo o nosso consumo cultural. Mas e a Palavra de Deus?
Percebe o que Paulo está dizendo aos crentes de Roma? Que a forma deles verem o mundo em alguma medida tem a forma de pensar deste século. Naturalmente, afinal, estamos neste mundo. E isso precisa mudar. A mente precisa ser trabalhada pela escritura. Pergunta importante: Você já percebeu que na vida cristã nós estamos aprendendo constantemente? Você que esse processo nunca para?
Já ouviu uma pregação, leu um livro e percebeu que você entendia mal certo assunto bíblico? Ou talvez nem fosse um entendimento errado, mas superficial. E tinha tanto mais a saber. Você diria que seu entendimento da fé cristã e de suas implicações hoje é o mesmo do que cinco anos atrás? Espero que não. Espero que seu crescimento seja evidente aos olhos de todos, como Paulo falou para Timóteo que deveria ser.
Pergunta sincera: Você quer, daqui a uns anos, olhar para sua ficção e perceber que disse besteira acerca de Deus? Que ensinou uma visão de mundo pagã? Seja na sua visão sobre o trabalho, sobre o luto, sobre o sexo, sobre o dinheiro, sobre reconciliação ou o que for?
Sua obra vai comunicar e ensinar teologia, queira você ou não. E é isso mesmo que queremos. Queremos influenciar a vida das pessoas por meio de nossa ficção. Pense comigo no Novo Testamento e nas cartas de Pedro, Paulo, João, Tiago, etc. Eles estavam escrevendo a crente; mas crentes que tinham sérias deficiências na sua cosmovisão, no seu entendimento sobre o mundo. Por isso que boa parte dessas epístolas envolve correção, ensino e exortação.
Os Gálatas com seu legalismo e amor por seguir e impor regrinhas de vida que Cristo não coloca precisam ter suas mentes transformadas. Imagine, entretanto, um autor crente que como os Gálatas ainda não entendeu a liberdade do evangelho. Digamos que sua história é um romance de formação que conta sobre uma jovem que na faculdade, anos 70 no Brasil, conhece o evangelho. Ela fica em conflito de consciência sobre que regras que as igrejas colocam ela deveria seguir. Um autor legalista como um gálata iria escrever uma história contendo uma mensagem à qual o próprio apóstolo Paulo chamaria de anátema, enquanto o autor legalista estaria chamando de ficção cristã.
Pense nos Filipenses com suas dificuldades de orgulho — aqueles cristãos estavam precisando tremendamente entender como a humilhação de Cristo trazia implicações para o relacionamento deles Imagine uma autora cristã que, como os filipenses, não entendeu isso ainda. Como seria uma história dela sobre o relacionamento de uma mãe e sua filha em que há orgulho e ofensas acumuladas por anos de incompreensão mútua? Seria de fato cristã? Traria para o nível horizontal o que Cristo fez verticalmente por nós?
Ou ainda os Coríntios com seu entendimento torto sobre amor, casamento e relacionamento sexual. Imagina um crente de Corinto escrevendo um boy meets girl, ou um drama familiar. Seria um cristão escrevendo, mas sua visão desse assunto não seria nada cristã.
Os Tessalonicenses estavam confusos sobre o que a perspectiva da volta de Cristo significa no que diz respeito ao envolvimento com este mundo, em particular quanto ao trabalho. Se Jesus vai voltar logo, para que trabalhar? Imagine alguém com essa mentalidade e má compreensão da volta de Cristo escrevendo sobre uma jovem que está tentando decidir que caminho profissional seguir…
Ou considere os leitores de Pedro — imagine que um deles fosse escrever uma história que se passa na época da Reforma na França e seus personagens fossem protestantes perseguidos. Esse autor teria um entendimento bíblico de como Deus espera que lidamos com perseguição?
Ou o misticismo gnóstico dos Colossenses? Suas ideias estranhas sobre o corpo, sobre anjos.
Veja que todos esses eram cristãos, mas a cosmovisão deles ainda estava muito paganizada. Precisavam ser transformados pela renovação da mente, e não moldados ao século em que viviam. Não é por você, caro escritor, ser cristão, que sua visão de todas as coisas é cristã. E, sendo assim, pode ser que você escreva ficção cristã que seja, infelizmente, pagã mesmo.
Não tem jeito, você vai vai comunicar teologia ao fazer ficção. Deixe-me trazer dois exemplos famosos do mundo da ficção cristã no Brasil
Este mundo tenebroso e suas continuações “ensinou” para muita gente uma visão sobre batalha espiritual que está longe de ser algo unânime no meio cristão. Cheio de caracterizações impressionantes sobre anjos, demônios e as suas lutas, esses livros cativaram muitos leitores brasileiros nos anos 90. O meu ponto aqui nem é se essa visão está certa ou errada. Ela é bem nova no cristianismo, surge com o movimento moderno de Batalha Espiritual. O ponto é que Frank Peretti conseguiu dar vida a essa maneira de ver o mundo. E essa se tornou na cabeça de muitos leitores a maneira padrão para pensar sobre essas coisas. Vê que com grandes poderes literários vêm grandes responsabilidades artísticas?
Deixados para trás — essa série popularizou uma visão escatológica chamada de dispensacionalismo pré-tribulacionista. Mais uma vez, não estou aqui defendendo ou atacando essa visão, apenas apontando que essa é apenas uma de muitas formas de interpretar o Apocalipse. Mas para muitos crentes ela se tornou A VISÃO. Tornou-se padrão acreditar em arrebatamento secreto, por exemplo. Essa interpretação, entretanto, está longe de ser majoritária, sendo, inclusive, uma interpretação bem recente na história da igreja. Mas Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins foram extremamente bem-sucedidos em conseguir comunicar sua visão teológica em forma de ficção, a pontos de muitos crentes simplesmente assumirem que vai ser assim e pronto (inclusive dá um trabalhão explicar para as minhas ovelhas que não penso ser bem desse jeito).
Veja, não que apresentar pontos de vista teológicos seja um problema; mas é algo do qual você faria bem em estar ciente. Entendo que há entre nós cristãos enorme diversidade em questões teológicas. Entre leitores e escritores há pentecostais, arminianos, calvinistas, credobatistas, pedobatistas, continuístas, cessacionistas etc.
E, obviamente isso vai aparecer em alguma medida na nossa ficção. Meu ponto não é tentar formatar ou pasteurizar todo mundo. Meu ponto é mais basilar, é que você entenda sua responsabilidade em crescer e moldar sua visão a fim de que sua produção seja verdadeiramente cristã, e não nominalmente. Seja qual for sua linha. Que você tenha entendimento do que defende.
Na música, bem sabemos, isso é um problemão. Tem muito músico crente que faz música que fala coisas erradas sobre Deus. Isso é, obviamente, um desserviço ao povo de Deus e ao mundo. Não importa quão bem intencionado seja o artista. E no movimento que está ainda começando de ficção cristã, como vai ser? Histórias marcadas por má teologia? Por teologia rasinha e mal desenvolvida? Afinal, em nossas histórias falaremos sobre, dinheiro, amor, sucesso, perdão, família, racismo, trabalho, tragédias, lazer, animais, más memórias, traumas, infância, vícios, masculinidade e feminilidade, medo, ansiedade e todo assunto debaixo do Sol. E a Bíblia nos ensina sobre essas coisas. Não assuma que você tem uma visão bíblica desses tópicos pelo mero fato de você ser cristão.
Por certo você deseja que sua obra criativa honre a Cristo. E o mero usar de seus dons criativos já é parte disso. É claro, queremos ainda que a cosmovisão correta atravesse nossas histórias. Entenda que com isso não estou dizendo que todas as personagens, bem como suas ações e opiniões sejam sempre biblicamente acertadas! Às vezes meus personagens dizem coisas com as quais eu não concordo. Você não precisa concordar com as opiniões e descobertas que as personagens fazem. Isso é libertador. Eles não estão necessariamente representando você e suas ideias. Ou não completamente. Porém, o ponto é que não é bom que suas limitações causem erro.
Isso significa que não posso mais escrever até completar um curso completo de boa teologia? Não acho que chegue a tanto. Porém, se você é recém-convertido eu sugiro que você anote suas ideias de histórias e até comece a desenvolvê-las, mas que passe por um bom discipulado antes de publicá-las. Afinal, certamente, embora você já tenha um coração novo, certamente você ainda vê muito da vida como um pagão.
É necessário estar se sujeitando ao meios de graça e crescendo na fé. Frequência ao culto público, serviço na igreja local, supervisão, comunhão cristã, etc. Isso tudo deve fazer parte da vida de todos os cristãos. E, de certa forma, o escritor precisa ser mais do que o mero crente da igreja local. Por que? Pois quando você se propõe a fazer arte cristã, você está em alguma medida se colocando como mestre da igreja. Como alguém que vai ensinar aos demais sobre Deus e a vida. Seja você um músico ou um escritor. Como Tiago bem alertou:
“Meus irmãos, não sejais muitos de vós mestres, sabendo que receberemos um juízo mais severo.” (Tiago 3.1)
Além do crescimento normal que se espera de todo crente, quero desafiá-los a incluir na sua preparação para um livro, algum tipo de pesquisa teológica específica.
Pesquisa é parte de escrever. Todos sabemos disso. Aliás, para mim é uma das partes mais prazerosas do processo. Por exemplo, se você vai escrever uma cena que se passa no Beto Carrero World, há algumas informações que você precisa ter. Que horas o parque abre? Qual o custo do ingresso? Quanto tempo leva para andar em todas as atrações? Não basta ter visto algumas filmagens em redes sociais de quem já foi. Precisamos de mais informações, tanto as oficiais como as de usuários do parque. Se possível, conversar com gente que já foi ou mesmo programar uma visita.
Se seu protagonista é um dentista, há pesquisa a fazer. Claro, depende um pouco de o quanto isso vai aparecer na história. Seja como for, não adianta dizer “Ah eu já fui ao dentista, sei bem escrever o que é ser um.” Obviamente, não! Talvez você queira conversar com um. Bem possivelmente há dentistas na sua igreja. Você precisa pesquisar.
Se seu protagonista é um ourives numa cidade medieval, ou um ferreiro você vai querer aprender um pouco do linguajar do ramo. Termos de objetos ligados ao ofício, verbos envolvidos no cotidiano e assim por diante.
Por exemplo, em minha pesquisa para escrever “Voando para leste”, investiguei muito sobre o cotidiano e segredos dos comissários aéreos. Achei um fórum online para esse grupo em que discutem todo tipo de coisa. Se fosse hoje, aproveitaria que conheço gente com larga experiência trabalhando como comissária e a encheria de perguntas. Afinal, queria que a minha representação da Suri fosse cheia de realidade, ainda que fictícia.
Pesquisar é parte da alegria de escrever. Aliás, dá para perceber com certa facilidade o escritor que não pesquisa seu tópico. Mas e no que diz respeito ao seu entendimento teológico de temas que você vai lidar no seu livro? Você deve pesquisar também! Talvez você pense sobre o tópico em questão de uma forma secularizada e não tão bíblica como imagina.
Imagine que um tema central da sua história seja perdão. “Ah eu já tive de perdoar, sei como é difícil, basta refletir sobre minha própria experiência. Além disso, já ouvi sermões que lidam com o assunto.” Bem, tudo isso é útil, mas é pouco. Que tal enquanto escreve seu livro pegar um bom livro sobre teologia do perdão? Para garantir que assim como você fala corretamente sobre o processo de produção de espadas, você também falará corretamente sobre o que Deus espera de nós em relação uns aos outros.
É uma história sobre relacionamento amoroso? Sobre relacionamento pais e filhos? Sobre sobreviver a feridas profundas na alma? Sobre a beleza da criação e nossa responsabilidade para com ela? Sobre viver uma vida de aparências? Temos boa teologia produzida e publicada sobre tudo isso. E não assuma que sua mente está sintonizada automaticamente com essa boa teologia pelo mero fato de você ser cristão.
Talvez não tenha de ser um livro inteiro sobre o tópico; mas dois ou três artigos, umas palestras de teólogos respeitados… Não para você usar as frases em citações nos diálogos de seus personagens, mas para você garantir que você mesmo está vendo esse assunto como um cristão. Entendo, claro que há diferenças doutrinárias em vários assuntos, porém sua ficção cristã precisa ser… CRISTÃ — e não pagã com um ar de cristianismo. E não, não basta ter o linguajar do crentês. Inclusive, é melhor que nem tenha.
É seu dever ir atrás, como parte de sua pesquisa, desse conhecimento. Vamos a alguns exemplos para tudo ficar mais claro?
Exemplo 1 — Imagine que sua história lida fortemente com o tema do perdão, como sugerido anteriormente. É, por exemplo, uma história que conta sobre gerações em que vai se perpetuando uma maneira de lidar com os filhos que gera feridas e recorrentes problemas. Estamos falando de tratamentos psicologicamente abusivos mesmo. A sua história se passa em Belo Horizonte nas décadas de 50 a 80… visitando uma geração após a outra.
Você não vai assumir que já sabe tudo o que precisa sobre BH nessas décadas, vai? Mesmo que você seja da cidade, irá pesquisar. Vai querer saber como era a vida na época de sua trama. Que tipo de passeio as famílias faziam? Que tipo de problema social era comum? Talvez precise pesquisar um pouco sobre o linguajar de cada uma dessas décadas para dar sabor ao seu texto. Se a sua história se passar no bairro X, você vai querer ler sobre como ele era nessas décadas… bairros mudam. Você não vai botar seus personagens dos anos 70 para passear de metrô em Belo Horizonte, já que ele foi inaugurado em 1986 (pesquisei). Mas espero que sua pesquisa não pare aí. Pois com temas teologicamente tão complexos como abuso, perdão, restauração… você devia incluir na sua pesquisa alguns bons livros cristãos sobre esses assuntos. Perdão é incondicional? Deus nos perdoou incondicionalmente? Não assuma que você já sabe o que dizer sobre tudo isso pelo mero fato de ser cristão e ter alguma noção dessas coisas. Talvez o seu entendimento sobre perdão seja muito mais baseado no que você aprendeu na família do que na Escritura. E não assuma que são a mesma coisa apenas por sua família ser cristã! Talvez suas noções sobre o tópico venham mais do que aprendeu nas novelas da Globo, seriados da Netflix e quadrinhos do Maurício de Souza.
Ah, Emilio… por isso que escrevo fantasia. Não preciso pesquisar nada, crio meu mundo e é isso!
Exemplo 2 — Uma fantasia ou Sci-fi em que um tema central importante seja adoção. Digamos que você está lidando com uma terra fantástica que criou chamada FIFIFI. E lá as pessoas são todas alérgicas a água em seu estado líquido então a hidratação precisa ocorrer de uma forma um tanto complexa. Lá eles criaram vários métodos para isso, alguns usando um sistema de magia, enquanto outros se valem de tecnologia tão avançada que é, para todos os efeitos, indistinguível de magia (3a lei de Clarke).
A trama gira em torno da sucessão do trono do império, com o imperador FIFIFêncio III havendo morrido, possivelmente de morte matada. E a guerra que se sucede é entre seus sobrinhos e seu único filho, um filho adotivo. Além de pensar sobre todo esse rolo político, além de lidar com essa limitação sobre a água e como isso vai influenciar a história e a vida das pessoas, claramente você precisa refletir biblicamente sobre adoção. Não os estereótipos, não as meras ideias da tolice popular, mas boa teologia. Há uma teologia da adoção que traz uma visão cristã que combina a adoção que recebemos em Cristo e a horizontaliza para as adoções humanas. Quem sabe o livraço do Russel Moore sobre o assunto te ajude. E seria muito importante ver isso, pois talvez seja aí que sua ficção seja distintamente cristã, e não no sistema de magia ou na criatividade dos nomes das personagens.
Seu mundo é fictício e você o inventa como quiser, mas você quer uma visão da adoção que seja bíblica, cristã. Ou sua obra de cristã vai ter somente o nome.
Exemplo 3 — uma história de espionagem nos moldes de John Le Carré ou Frederick Forsyth — uma trama que se passa em Praga nos anos 60, em plena Guerra Fria. O protagonista é um espião britânico que é um cristão anglicano devoto. Que tipo de dilema ético vai ser particularmente difícil a ele? Que tipo de estudo você deveria estar fazendo para pesquisar esse assunto?
Obviamente você iria querer estudar sobre a Guerra Fria. Ler bastante sobre a vida real de espiões. Conhecer a gramática desse tipo de gênero literário. Estudar algo do clima, geografia, do ambiente na Tchecoslováquia dessa época. E chamar de Tchecoslováquia, não de República Checa ou Chéquia.
Mas como escritor cristão, seria também sua responsabilidade ler algo sobre a ética disso tudo. Há ótimos livros de teologia moral que lidam com questões como as que surgem numa história assim. Um agente secreto está livre da obrigação de “Não dar falso testemunho”? Como se resolve isso? Há várias tentativas de responder a isso dentro de uma estrutura de pensamento cristã.
E uma vez capturado o temível agente duplo que estava trabalhando para Moscou? O pessoal rapidamente quer se valer de tortura para arrancar seus segredos e assim possivelmente salvar muitas vidas… o que a teologia de nosso personagem vai dizer? Talvez a sua visão de uma situação como essa seja mais formada por sua cultura do que pela escritura! E talvez sejam justamente os dilemas éticos ligados a isso que tragam uma diferença interessantíssima que apenas a cosmovisão cristã seja capaz de trazer .
Exemplo 4 — Uma história de ficção científica que se passa na Austrália no Séc. 23, depois de uma raça de alienígenas ter nos exterminado e os poucos humanos que sobraram terem sido colocados para viver no deserto australiano. Quem estiver disposto a tratar os alienígenas como deuses recebe muitas regalias e uma vida melhor. Como lidar com as exigências do coração perante a idolatria e suas promessas de uma vida melhor? Você, sendo humano, conhece idolatria, é claro. Mas tem um ótimo livro do Tim Keller e um profundo estudo sobre o tema do Greg Beale que vão te treinar a ver esse tema biblicamente, para que sua história venha banhada de cosmovisão cristã.
Enfim… São inúmeros os possíveis exemplos.
Espero que se animado com a ideia. É um desafio em amor a todos os escritores.
CONCLUSÃO
Todos nós somos pessoas ímpares, e por isso escritores ímpares. Temos nossa forma de ver a vida, o universo e tudo o mais. E agradeço a Deus por isso. Nada do que falei visa abafar a sua voz tão única, mas afiná-la para que cante melodias que não sejam dissonantes com a voz do criador. Ao contrário, sejamos vozes que exploram as possibilidades do que é e do que poderia ser em conformidade com ele, e não com este século. Para isso, devemos domar nossos corações em sujeição à Palavra de Deus, a fim de que nossa imaginação o glorifique em tudo o que fizermos. Que o Senhor nos ajude!
Conheça os livros da Editora Fiel sobre o tema Cosmovisão cristã – CLIQUE AQUI.