Exposição



Justificação pela Fé Somente – por R. C. Sproul

Extraído do livro Todos Somos Teólogos (Editora Fiel, 2017). Usado com permissão.

A doutrina da justificação tem causado grande controvérsia na história do cristianismo. Provocou a Reforma Protestante, quando os reformadores tomaram sua posição em favor de sola fide ou a justificação somente pela fé. Martinho Lutero afirmava que a doutrina da justificação somente pela fé é o artigo do qual dependem a prosperidade ou a ruína da igreja, e João Calvino concordava com ele. Eles tinham opiniões firmes sobre esta doutrina porque entendiam, com base na Escritura, que nada menos do que o próprio evangelho está em jogo quando a justificação é debatida.

A doutrina da justificação diz respeito à situação mais grave de seres humanos caídos – sua exposição à justiça de Deus. Deus é justo, mas nós não somos. Como Davi orou: “Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (Sl 130.3). É óbvio que esta é uma pergunta retórica; ninguém pode resistir ao escrutínio divino. Se Deus tomasse a sua régua de justiça e a usasse para avaliar a nossa vida, pereceríamos, porque não somos justos. A maioria de nós pensamos que, se nos empenharmos para ser pessoas boas, isso será suficiente quando comparecermos diante do julgamento de Deus. O grande mito da cultura popular, que entrou na igreja, é que pessoas podem ganhar por mérito o favor de Deus, embora a Escritura afirme claramente que, por obras da lei, ninguém será justificado (Gl 2.16). Somos devedores que não podem pagar sua dívida.

É por essa razão que o evangelho é chamado “boas novas”. Como Paulo escreveu sobre o evangelho: “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé” (Rm 1.16-17). Em última análise, a justificação é um pronunciamento legal feito por Deus. Em outras palavras, a justificação só pode ocorrer quando Deus, que é ele mesmo justo, se torna o justificador por decretar que alguém é justo aos olhos dele.

SIMUL IUSTIS ET PECCATOR

O debate no século XVI se focalizou em se Deus espera que pessoas se tornem justas antes de declará-las justas, ou se ele as declara justas aos seus olhos enquanto ainda são pecadores. Lutero propôs uma fórmula que tem sobrevivido desde o tempo do debate. Ele disse que somos simul iustus et peccator, que significa “ao mesmo tempo justo e pecador”. Lutero estava dizendo que uma pessoa justificada é simultaneamente justa e pecadora. Somos justos por virtude da obra de Cristo, mas ainda não fomos aperfeiçoados, por isso, ainda pecamos.

A Igreja Católica Romana argumenta que o ensino de Lutero era uma ficção legal. Os teólogos católicos romanos perguntam: como Deus pode declarar pessoas justas quando ainda são pecadoras? Isso seria indigno de Deus. Em lugar disso, Roma argumenta em favor do que é chamado “justificação analítica”. Eles concordam em que a justificação acontece quando Deus declara alguém justo. No entanto, para Roma, Deus não declarará uma pessoa justa enquanto essa pessoa não for, de fato, justa. Os protestantes respondem dizendo que não há nada de ficcional quando Deus declara uma pessoa justa. Essa pessoa é justa aos olhos de Deus por virtude da obra real de Jesus Cristo, que não é ficcional.

A CAUSA INSTRUMENTAL

Dizemos que a justificação é somente pela fé, e a palavra pela nesta sentença era parte da controvérsia do século XVI. Pela se refere ao meio pelo qual algo chega a acontecer. Portanto, a controvérsia dizia respeito à causa instrumental da justificação. Hoje não falamos muito sobre causas instrumentais. De fato, essa linguagem remonta à Grécia antiga, ao tempo em que o filósofo Aristóteles fez distinção entre vários tipos de causas: material, formal, final, eficiente e instrumental. Como ilustração, Aristóteles usava a criação de uma estátua por um escultor. O escultor molda o seu bloco de pedra. A causa material para a estátua é a matéria da qual a escultura é produzida, a própria pedra. A causa instrumental, o meio pelo qual o rústico bloco de pedra é transformado numa estátua magnífica, é o martelo e o cinzel. Esta foi a linguagem usada no debate do século XVI.

INFUSÃO OU IMPUTAÇÃO

A Igreja Católica Romana dizia que a causa instrumental da justificação é o sacramento do batismo. O batismo confere sacramentalmente ao recipiente a graça da justificação; em outras palavras, a justiça de Cristo é derramada na alma daquele que recebe o batismo. Esse derramamento de graça na alma é chamado “infusão”. Portanto, Roma não crê que pessoas são justificadas sem a graça ou a fé, mas que a justificação vem como resultado de uma infusão de graça pela qual a justiça humana se torna possível.

Então, disse Roma, para que as pessoas se tornem justas, elas têm de cooperar com a graça infundida. Têm de concordar com essa graça em tal grau que a justiça seja alcançada. Enquanto as pessoas se guardarem de cometer pecados mortais, permanecem num estado de justificadas. Entretanto, de acordo com Roma, o pecado mortal é tão mau que destrói a graça justificadora que a alma possui. Portanto, aqueles que cometem um pecado mortal perdem a graça da justificação. Mas nem tudo está perdido. Um pecador pode ser restaurado ao estado de justificação por meio do sacramento de penitência, que a Igreja de Roma define como a segunda tábua de justificação para aqueles que fizeram um “naufrágio” de sua fé. Essa é a razão por que pessoas vão à confissão, que é parte do sacramento de penitência. Quando uma pessoa confessa seus pecados, ela recebe absolvição, depois da qual tem de realizar obras de satisfação que ganham o que Roma chama de “mérito congruente”. Obras de mérito congruente são integrais ao sacramento de penitência, porque estas obras de satisfação tornam apropriado, ou congruente, que Deus restaure o pecador ao estado de graça. Assim, Roma tem realmente duas causas instrumentais de justificação: o batismo e a penitência.

Em oposição a este ponto de vista, os reformadores protestantes argumentaram que a única causa instrumental da justificação é a fé. Logo que pessoas abraçam a Cristo pela fé, o mérito de Cristo é transferido para elas. Enquanto Roma sustenta a justificação por infusão, os protestantes sustentam a justificação por imputação. A Igreja Católica Romana diz que Deus declara alguém justo somente por virtude de sua cooperação com a graça infundida de Cristo. Para os protestantes, a base da justificação permanece exclusivamente na justiça de Cristo – não a justiça de Cristo em nós, mas a justiça de Cristo por nós, a justiça que Cristo realizou em sua obediência perfeita à lei de Deus. Esta justiça, a primeira parte da base da justificação, é aplicada a todos os que colocam sua confiança em Cristo. A outra parte da base da justificação é a perfeita satisfação de Cristo às sanções negativas da lei em sua morte sacrificial, na cruz.

Isto significa que somos salvos não somente pela morte de Jesus, mas também por sua vida. Uma dupla transferência acontece, uma dupla imputação. Como o Cordeiro de Deus, Cristo foi à cruz e sofreu a ira de Deus, mas não por qualquer pecado que Deus achou nele. Cristo tomou voluntariamente sobre si mesmo os nossos pecados. Ele se tornou o carregador de pecados quando Deus, o Pai, transferiu ou atribuiu nossos pecados a ele. Isso é imputação – uma transferência legal. Cristo assumiu nossa culpa em sua própria pessoa. Nossa culpa foi imputada a Cristo. A outra transferência acontece quando Deus imputa a nós a justiça de Cristo.

Quando Lutero dizia que a justificação é somente pela fé, queria dizer que a justificação é somente por meio de Cristo, por meio do que ele realizou para satisfazer as exigências da justiça de Deus. A imputação envolve a transferência da justiça de outra pessoa. A infusão envolve uma implantação de justiça que é inerente ou existe em nós.

Portanto, a causa instrumental da justificação, de acordo com Roma, são os sacramentos de batismo e de penitência. E, para os protestantes, a causa instrumental da justificação é a fé sozinha. Além disso, o ponto de vista católico romano sobre a justificação se fundamenta em infusão, mas o ponto de vista protestante se fundamenta em imputação.

ANALÍTICO OU SINTÉTICO

Outra diferença é que o ponto de vista católico romano quanto à justificação é analítico, enquanto o ponto de vista da Reforma é sintético. Uma afirmação analítica é uma afirmação que é verdadeira por definição. Por exemplo, “um solteiro é um homem não casado”. O predicado “homem não casado” não acrescenta nenhuma informação nova sobre o sujeito da frase, “um solteiro”, por isso a afirmação é verdadeira por definição. No entanto, se dizemos: “O solteiro é um homem rico”, dissemos ou predicamos algo sobre o solteiro que não se acha no sujeito, porque nem todos os solteiros são ricos. Nesse caso, temos uma afirmação sintética.

A Igreja Católica Romana diz que Deus não declara pessoas justas, enquanto elas não são justas. Os protestantes dizem que pessoas são justas sinteticamente, porque algo é acrescentado a elas, a justiça de Cristo. Portanto, para os católicos, a justiça tem de ser inerente, enquanto para os protestantes a justiça é extra nos, ou seja, “fora de nós”. Falando corretamente, a justiça não é nossa própria. É contada como nossa apenas quando abraçamos a Cristo pela fé.

As maravilhosas boas novas do evangelho é que não temos de esperar até que tenhamos sido purificados de todas as impurezas no purgatório. No momento em que colocamos nossa confiança em Jesus Cristo, tudo que ele é e tudo que ele possui se tornam nosso; e somos transportados imediatamente para um estado de reconciliação com Deus


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