Um blog do Ministério Fiel
Martinho Lutero: lições a partir de sua vida e labores (Parte 2)
(Leia a Parte 1)
Por que os pastores devem ouvir Lutero?
Então, Lutero foi um professor universitário de teologia por toda a sua vida profissional. Isso faz com que levantemos a questão de saber se ele realmente pode servir como qualquer tipo de modelo para pastores, ou mesmo entender o que os pastores enfrentam em nosso tipo de ministério. Mas isso seria um erro. Pelo menos três coisas unem Lutero ao nosso chamado.
- Ele foi mais um pregador do que qualquer um de nós é pastor.
Lutero conhecia o peso e a pressão da pregação semanal. Havia duas igrejas em Wittenberg, a igreja da cidade e a igreja do castelo. Lutero era um pregador regular na igreja da cidade. Ele disse: “Se eu pudesse me tornar rei ou imperador hoje, não desistiria do meu ofício como pregador” (39). Ele era movido por uma paixão pela exaltação de Deus na Palavra. Em uma de suas orações ele diz: “Querido Senhor Deus, desejo pregar para que tu sejas glorificado. Quero falar sobre ti, louvar-te e exaltar o teu nome. Embora eu provavelmente não consiga fazê-lo bem, tu não podes fazeres com que isso seja bem feito?” (Meuser, 51).
Para sentir a força desse comprometimento, você deve perceber que na igreja de Wittenberg naqueles dias não havia programas, mas apenas adoração e pregação. Domingo, às 5:00 da manhã havia adoração com um sermão baseado em uma epístola; às 10:00 da manhã um sermão com base em um evangelho; à tarde, uma mensagem no Antigo Testamento ou catecismo. Os sermões de segunda e terça-feira eram baseados no catecismo; às quartas-feiras em Mateus; às quintas e sextas-feiras nas cartas apostólicas; e sábado em João (Meuser, 37-38).
Lutero não era o pastor da igreja da cidade. Seu amigo, Johannes Bugenhagen, foi o pastor de 1520 a 1558. Mas Lutero compartilhava a pregação praticamente todas as semanas em que ele estava na cidade. Ele pregava porque os habitantes da cidade queriam ouvi-lo e porque ele e seus contemporâneos entendiam o seu doutorado em teologia como um chamado para ensinar a Palavra de Deus a toda a igreja. Então, Lutero sempre pregava duas vezes no domingo e uma vez durante a semana. Walther von Loewenich disse em sua biografia: “Lutero foi um dos maiores pregadores da história da cristandade… Entre 1510 e 1546, Lutero pregou cerca de 3.000 sermões. Frequentemente ele pregava várias vezes por semana, muitas vezes duas ou mais vezes por dia” (353).
Por exemplo, em 1522 ele pregou 117 sermões em Wittenberg e 137 sermões no ano seguinte. Em 1528, ele pregou quase 200 vezes e, a partir de 1529, temos 121 sermões. Assim, a média desses quatro anos foi um sermão a cada dois dias e meio. Como Fred Meuser diz em seu livro sobre a pregação de Lutero: “Nunca ficou um fim de semana sem pregar — ele sabe tudo sobre isso. Nem mesmo deixou de pregar em um dia de semana. Nunca houve alguma pausa na pregação, ensino, estudo privado, produção, escrita e aconselhamento” (27). Esse é o primeiro vínculo com os nossos pastores. Ele conhece o fardo da pregação.
- Como a maioria dos pastores, Lutero era um homem de família, pelo menos desde os 41 anos até a morte, aos 62 anos.
Lutero conheceu a pressão e o sofrimento de ter, criar e perder filhos. Katie deu-lhe seis filhos em rápida sucessão: João (1526), Elisabete (1527), Madalena (1529), Martinho (1531), Paulo (1533) e Margarete (1534). Faça uma pequena análise sobre isso. O ano entre Elizabete e Madalena foi o ano em que ele pregou 200 vezes (mais de uma vez a cada dois dias). Acrescente a isso que Elizabete morreu naquele ano aos oito meses de idade, e ele prosseguiu sob essa dor.
E para que não pensemos que Lutero negligenciava os filhos, considere que nas tardes de domingo, muitas vezes após pregar duas vezes, Lutero liderava as devoções domésticas, que eram praticamente outro culto de adoração durante uma hora, incluindo convidados e os filhos (Meuser, 38). Então, Lutero conhecia as pressões de ser um homem de família público e atarefado.
- Lutero era um homem da igreja, não um erudito teológico.
Ele não apenas era parte de quase todas as controvérsias e conferências de seu dia, mas geralmente também era o líder. Houve a Disputa de Heidelberg (1518), o encontro com o Cardeal Cajetan em Augsburg (1518), a Disputa de Leipzig, com John Eck e Andrew Karlstadt (1519), e a Dieta de Augsburg, embora ele não estivesse lá pessoalmente (1513).
Além do envolvimento pessoal e ativo nas conferências da igreja, havia o incrível fluxo de publicações que estão relacionadas à orientação da igreja. Por exemplo, em 1520, ele escreveu 133 obras; em 1522, 130; em 1523, 183 (uma a cada dois dias!), e muitas 1524 (Meuser). Ele era uma espécie de para-raios de todas as críticas contra a Reforma. “Todos se voltam para ele, cercando a sua porta a cada hora, cidadãos, médicos e príncipes. Enigmas diplomáticos deveriam ser resolvidos, pontos teológicos complicados deveriam ser esclarecidos, a ética da vida social precisava ser estabelecida” (Martyn, 473).
Com a ruptura do sistema medieval da vida da igreja, um novo modo de pensar sobre a igreja e a vida cristã precisava ser desenvolvido. E na Alemanha, a tarefa coube, em grande medida, a Martinho Lutero. É surpreendente como ele se dedicou aos assuntos terrenos da vida paroquial. Por exemplo, quando foi decidido que “visitantes” do estado e da universidade seriam enviados para cada paróquia para avaliar a condição da igreja e fazer sugestões para a vida da igreja, Lutero aceitou escrever as diretrizes: “Instruções para visitantes de pastores paroquiais no Eleitorado da Saxônia”. Ele abordou uma ampla gama de questões práticas. Quanto à educação das crianças, ele chegou a determinar como as classes infantis deveriam ser divididas em três grupos: pré-leitores, leitores e leitores avançados. Então ele fez sugestões sobre como ensiná-los.
As crianças devem primeiro aprender a ler a cartilha na qual está o alfabeto, a oração do Senhor, o credo e outras orações. Quando eles o aprenderem, receberão Donatus e Cato, para ler Donatus e expor Cato. O professor precisa expor uma ou duas frases de cada vez, e as crianças devem repeti-las em um momento posterior, para que assim construam um vocabulário (Conrad Bergendoff, editor, Church and Ministry II, vol. 40, Luther’s Works, (Philadelphia: Muhlenberg Press, 1958), 315–316).
Menciono esse fato simplesmente para mostrar que este professor universitário estava intensamente envolvido na tentativa de resolver os problemas de ministério mais práticos, desde o berço até ao túmulo. Ele não estudava em período de lazer ininterrupto de verões sabáticos e longos. Ele era constantemente solicitado e estava constantemente trabalhando.
Então, concluo que embora ele fosse um professor universitário, há razões pelas quais os pastores deveriam olhar para o seu trabalho e ouvir as suas palavras, de modo a aprenderem e se inspirarem para o ministério da Palavra — a “Palavra externa”, o Livro.
Lutero no estudo: a diferença feita pelo Livro
Para Lutero, a importância do estudo estava tão entrelaçada com sua descoberta do verdadeiro evangelho que ele nunca poderia tratar do estudo como qualquer outra coisa que não fosse absolutamente crucial, vital e formadora da história. Para ele, o estudo tinha sido a porta de entrada para o evangelho, para a Reforma e para Deus. Nós presumimos tanto hoje sobre a Palavra que dificilmente podemos imaginar o que custou a Lutero lutar pela verdade e defender o acesso à Palavra. Para Lutero, o estudo é importante. Sua vida e a vida da igreja dependiam disso. Precisamos perguntar se todo o terreno conquistado por Lutero e por outros reformadores pode ser perdido ao longo do tempo se perdermos essa paixão por estudar, ao presumirmos que a verdade permanecerá óbvia e disponível.
Para ver esse entrelaçamento entre o estudo e o evangelho vamos voltar aos primeiros anos em Wittenberg. Lutero data a grande descoberta do evangelho em 1518 durante a sua série de estudos nos Salmos (Dillenberger, xvii). Ele conta a história em seu Preface to the Complete Edition of Luther’s Latin Writings [Prefácio à Edição Completa dos Escritos de Lutero em Latim]. Essa descrição da descoberta é extraída do prefácio escrito em 5 de março de 1545, ano anterior à sua morte. Observe as referências aos seus estudos das Escrituras (em itálico).
Eu realmente fui cativado com um extraordinário ardor por entender Paulo na Epístola aos Romanos. Mas, até então, foi… uma única palavra no Capítulo 1 [.17]: “Porque nele se descobre a justiça de Deus”, que permaneceu em meu caminho. Pois, eu odiei aquela expressão “justiça de Deus”, que, segundo o uso e o costume de todos os professores, fui ensinado a compreender filosoficamente a justiça formal ou ativa, como a chamavam, com a qual Deus é justo e castiga o pecador injusto.
Ainda que como monge eu tinha uma vida irrepreensível, sentia que era um pecador diante de Deus, e tinha uma consciência extremamente perturbada. Não podia crer que Deus era aplacado com as satisfações que eu lhe dava. Eu não amava, mas sim, odiava a justiça de Deus que pune pecadores e, secretamente, se não com blasfêmia, com certeza murmurando muito, estava irado contra Deus e disse: “Como se não bastasse que miseráveis pecadores, eternamente perdidos por causa do pecador original, sejam esmagados por toda espécie de calamidade pelo Decálogo, Deus tivesse de acrescentar dor sobre dor pelo evangelho, e também com o evangelho nos ameaçando com sua justa ira!”. Assim, me irava, com uma consciência furiosa e perturbada. Contudo, persistentemente golpeei aquela passagem de Paulo, desejando ardentemente entender o que ele quis dizer com “a justiça de Deus”.
Por fim, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, observei o contexto das palavras, a saber: “Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá pela fé”. Ali, comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por meio de um dom de Deus, ou seja, pela fé. E este é o significado: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, ou seja, a justiça passiva com a qual [o] Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “o justo viverá pela fé”. Senti que nasci de novo e entrei no próprio paraíso através de portões abertos. Nessa passagem, uma face totalmente diferente de toda a Escritura se revelou a mim. Então, de memória, percorri as Escrituras…
E considerei a palavra amabilíssima com um amor tão grande quanto o ódio que tinha antes ao odiar a expressão “justiça de Deus”. Assim, essa passagem em Paulo foi para mim verdadeiramente o portão do paraíso (Dillenberger, 11).
Observe como Deus estava trazendo Lutero para a luz do evangelho da justificação. Todas as seguintes seis frases revelam a intensidade do estudo e da luta com o texto bíblico:
- Eu realmente fui cativado com um extraordinário ardor por entender Paulo na Epístola aos Romanos.
- Segundo o uso e o costume de todos os professores, fui ensinado a compreender filosoficamente (Uma abordagem ao estudo da qual ele estava sendo liberto).
- Persistentemente golpeei aquela passagem de Paulo, desejando ardentemente entender o que ele quis dizer.
- Por fim, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, observei o contexto das palavras.
- Então, de memória, percorri as Escrituras.
- Essa passagem em Paulo foi para mim verdadeiramente o portão do paraíso.
As sementes de todos os hábitos de estudo de Lutero estão aqui ou são claramente implícitas. O que, então, distinguia o homem Lutero no estudo?
- Lutero elevou o próprio texto bíblico acima de todos os comentaristas ou pais da igreja.
Esta não foi a conclusão feita a partir da preguiça. Melancthon, amigo e colega de Lutero em Wittenberg, disse que Lutero conhecia tão bem a sua dogmática nos primeiros dias que ele poderia citar todas as páginas de Gabriel Biel (o texto padrão da Dogmática, publicado 1488) de cor (Oberman, 138). Isso não era falta de interesse pelos pais e filósofos; era uma paixão primordial pela superioridade do próprio texto bíblico.
Ele escreveu em 1533: “Por vários anos, tenho agora lido anualmente a Bíblia duas vezes. Se a Bíblia fosse uma árvore grande e poderosa e todas as suas palavras fossem pequenos ramos, tenho tocado em todos os ramos, desejoso de saber o que havia ali e o que cada ramo tinha para oferecer” (Plass, 83). Oberman diz que Lutero manteve essa prática por no mínimo dez anos (173). A Bíblia passou a significar mais para Lutero do que todos os pais e comentaristas.
“Aquele que conhece bem o texto da Escritura”, disse Lutero em 1538, “é um teólogo distinto. Pois, uma passagem ou texto bíblico tem mais valor do que os comentários de quatro autores” (Plass, 1355). Em sua Carta Aberta à Nobreza Cristã, Lutero explicou a sua preocupação:
Os escritos de todos os santos pais devem ser lidos apenas por um período, para que possamos ser conduzidos às Sagradas Escrituras. Conforme ocorre, no entanto, nós os lemos apenas para sermos absorvidos neles e nunca chegamos às Escrituras. Somos como homens que estudam essas placas sinalizadoras e nunca viajam pela estrada. Os queridos pais, por meio de seus escritos, desejavam que fôssemos levados às Escrituras, mas nós os usamos para sermos afastados das Escrituras, embora somente as Escrituras sejam nossa vinha onde devemos trabalhar e nos esforçar (Kerr, 13).
A Bíblia é a vinha do pastor, onde ele deve trabalhar e se esforçar. Mas, Lutero se queixou em 1539: “A Bíblia está sendo enterrada pela abundância dos comentários, e o texto está sendo negligenciado, embora em cada ramo de aprendizagem os melhores são aqueles que conhecem o texto” (Plass, 97). Para Lutero, isso não é uma mera pureza e fidelidade às fontes. Este é o testemunho de um homem que encontrou a vida na fonte da montanha, não no córrego secundário no vale. Para Lutero, era uma questão de vida e morte se alguém estudava o texto da própria Escritura ou passava a maior parte do tempo lendo comentários e literatura secundária. Lembrando dos primeiros dias de seu estudo das Escrituras, ele disse:
Quando eu era jovem, lia a Bíblia repetidamente, e era tão familiarizado com ela, que, em um instante, eu conseguiria apontar para qualquer versículo que fosse mencionado. Depois, li os comentaristas, mas logo os deixei, pois encontrei neles coisas que minha consciência não poderia aprovar, por serem contrárias ao texto sagrado. É sempre melhor ver com os próprios olhos do que com os de outras pessoas (Kerr, 16).
Lutero não quis dizer que não há lugar para ler outros livros. Afinal, ele escreveu livros. Mas ele nos aconselha a torná-los secundários e considerar poucos deles. Para mim, como um leitor lento, acho esse conselho muito encorajador. Ele diz:
Um aluno que não deseja que seu esforço seja desperdiçado, deve ler e reler um bom escritor de modo que o autor se integre, por assim dizer, em sua carne e sangue. Pois, uma grande variedade de leitura confunde e não ensina. Isso torna o aluno semelhante a um homem que mora em todos os lugares e, portanto, em nenhum lugar específico. Assim como não desfrutamos diariamente da comunhão com todos os nossos amigos, mas apenas de alguns amigos especiais, assim também deve ser em nossos estudos (Plass, 112).
A quantidade de livros teológicos deve… ser reduzida, e deve ser feita uma seleção do melhor deles; pois muitos livros e muitas leituras não tornam os homens muito sábios. Mas ler algo bom e ler com frequência, por pouco que seja, é a prática que torna os homens sábios nas Escrituras e que também os torna piedosos (113).
- Este foco radical no texto da própria Escritura, com a literatura secundária em um lugar secundário, conduz Lutero a uma luta intensa e séria com as próprias palavras de Paulo e outros escritores bíblicos.
Em vez de voltar-se aos comentários e aos pais, ele diz: “persistentemente golpeei aquela passagem de Paulo, desejando ardentemente entender o que ele quis dizer”. Esta não foi uma ocorrência isolada.
Ele disse aos seus alunos que o exegeta deveria tratar uma passagem difícil de modo semelhante a como Moisés fez com a rocha no deserto, ferindo-a com sua vara até que jorrasse água para as pessoas sedentas (Oberman, 224). Em outras palavras, golpeie o texto. “Persistentemente golpeei aquela passagem de Paulo”. Há um grande incentivo nesta luta com o texto: “A Bíblia é uma fonte impressionante: quanto mais alguém tira água dela e a bebe, mais a sede é estimulada” (Plass, 67).
No verão e no outono de 1526, Lutero assumiu o desafio de expor Eclesiastes ao pequeno grupo de estudantes que permaneceu em Wittenberg durante a praga. “Salomão, o pregador”, ele escreveu a um amigo, “está me dando trabalho, como se ele aborrecesse alguém que leia sobre ele. Mas ele deve se render” (Heinrich Bornkamm, trans. by E. Theodore Bachmann, Luther in Mid-Career, 1521–1530, (Philadelphia: Fortress Press, 1983, orig. 1979), 564.).
O estudo era isso para Lutero — tomar um texto como Jacó tomou o anjo do Senhor e dizer: “Ele deve se render. EU IREI ouvir e conhecer a Palavra de Deus neste texto para a minha alma e para a igreja!”. Foi assim que ele entendeu o significado de “justiça de Deus” na justificação. E foi assim que ele rompeu com a tradição e com a filosofia repetidas vezes.
- O poder e a preciosidade do que Lutero viu quando golpeou persistentemente a linguagem de Paulo o convenceu para sempre de que a leitura do grego e do hebraico era um dos maiores privilégios e responsabilidades do pregador reformado.
Novamente, o motivo e a convicção aqui não são compromissos acadêmicos para a erudição de alto nível, mas compromissos espirituais para proclamar e preservar um evangelho puro.
Lutero falou contra mil anos de trevas da igreja sem a Palavra, quando afirmou com ousadia: “Certamente, a menos que as línguas permaneçam, o evangelho finalmente perecerá” (Kerr, 17). Ele pergunta: “Você pergunta qual é a utilidade de aprender as línguas? Você diz: ‘Podemos muito bem ler a Bíblia em alemão?’”. E ele responde:
Sem as línguas não teríamos recebido o evangelho. As línguas são a bainha que contém a espada do Espírito; são a caixa que contém as inestimáveis joias do pensamento antigo; são o vaso que contém o vinho; e como o evangelho diz, são os cestos nos quais os pães e os peixes são guardados para alimentar a multidão.
Se negligenciarmos a literatura, acabaremos por perder o evangelho… Assim que os homens cessaram de cultivar as línguas, a Cristandade declinou, até que caiu sob o domínio incontestável do papa. Mas, logo que essa tocha reacendeu, aquela coruja papal fugiu com um grito em uma escuridão congenial. Em tempos passados, os pais se equivocaram frequentemente, porque ignoraram as línguas e, em nossos dias, há quem, como os valdenses, não pense que as línguas têm qualquer utilidade; mas, embora a sua doutrina seja boa, muitas vezes erram quanto ao verdadeiro significado do texto sagrado; eles estão sem armas contra erros, e temo muito que a sua fé não permanecerá pura (Martyn, 474).
A principal questão era a preservação e a pureza da fé. Onde as línguas não são apreciadas e buscadas, o cuidado na observação bíblica e no pensamento bíblico e a preocupação com a verdade diminuem. Isso porque as ferramentas para pensar de outra forma não são presentes. Esta era uma possibilidade intensamente real para Lutero porque ele sabia disso. Ele disse,
Se as línguas não me deixassem confiante quanto ao verdadeiro significado da Palavra, eu ainda poderia continuar sendo um monge agrilhoado, empenhado em pregar silenciosamente os erros romanistas na obscuridade de um claustro; o papa, os sofistas e o império anticristão teriam permanecido inabaláveis (Martyn, 474).
Em outras palavras, ele atribui o avanço da Reforma ao poder penetrante das línguas originais. O grande evento linguístico do tempo de Lutero foi a aparição do Novo Testamento grego editado por Desidério Erasmo. Assim que essa versão em grego apareceu em meio ao verão de 1516, Lutero a obteve e começou a estuda-la e usa-la em suas aulas sobre Romanos 9. Ele fez isso apesar de Erasmo ser um adversário teológico. Ter as línguas originais era um tesouro para Lutero; se fosse o caso, ele teria ido à escola com o próprio Diabo para aprendê-las.
Ele estava convencido de que haveriam muitos obstáculos no estudo sem a ajuda das línguas originais. “Santo Agostinho”, ele disse, “é obrigado a confessar, quando escreve em De Doctrina Christiana, que um professor cristão que deve expor as Escrituras também precisa das línguas grega e hebraica, além do latim; caso contrário, é impossível para ele não enfrentar obstáculos em toda parte” (Plass, 95).
E ele estava persuadido de que conhecer as línguas traria frescor e força à pregação. Ele disse:
Embora a fé e o evangelho possam ser proclamados por pregadores simples sem as línguas originais, tal pregação é superficial e fraca; os homens, no mínimo, se tornam enfadados e aborrecidos, e esta pregação acaba caindo por terra. Mas, quando o pregador é versado nas línguas, seu discurso tem frescor e força, toda a Escritura é considerada, e a fé é constantemente renovada por uma variedade contínua de palavras (Kerr, 148).
Agora, essa é uma afirmação desencorajadora para muitos pastores que negligenciaram o grego e o hebraico. O que eu diria é que conhecer as línguas originais pode fazer de qualquer pregador dedicado um pregador melhor — mais vigoroso, mais fiel, mais confiante e mais incisivo. Porém, é possível pregar fielmente sem elas — pelo menos por um tempo. A prova da nossa fidelidade à Palavra, se temos negligenciado as línguas, é a seguinte: temos um grande interesse que a igreja de Cristo promova a sua preservação, ensino e uso generalizados nas igrejas? Ou nós, por autoproteção, minimizamos a sua importância porque agir de outra forma seria ruim? Suspeito que, para muitos de nós hoje, as palavras fortes de Lutero sobre nossa negligência e indiferença são precisas quando ele diz:
É um pecado e uma vergonha não conhecer nosso próprio livro ou não entender o discurso e as palavras de nosso Deus; é um pecado e uma perda ainda maiores que não estudamos as línguas originais, especialmente nestes dias, quando Deus está concedendo e nos dando homens, livros e todas as facilidades e incentivos para este estudo, e deseja que a Bíblia seja um livro aberto. Ah, quão felizes os queridos pais teriam se tivessem a oportunidade de estudar as línguas e chegarem assim preparados para as Sagradas Escrituras! Que grande labor e esforço custou-lhes reunir algumas migalhas, enquanto nós, com metade do trabalho — sim, quase sem trabalho algum — podemos obter todo o pão! Ah, como o esforço deles envergonha a nossa indolência (Meuser, 43).
Essa referência à “indolência” nos leva à próxima característica de Lutero no estudo.