Dignidade da Pessoa Humana: entre a vida e a liberdade religiosa (Parte 1/2)

Quando lemos em nosso “feed” a palavra morte ou a notícia de quem alguém morreu, é natural que façamos as seguintes perguntas: “qual o propósito da morte na perspectiva cristã?” ou “ existem mortes legítimas quando estamos tratando da morte provocada por outro?” – hipótese da legítima defesa, que ocorre em caso de perigo iminente de morte, a perspectiva reformada bem explica que não há erro, conforme o Catecismo Nova Cidade[1], há uma diferença clara entre legítima defesa e assassinato.

Pois bem, ultrapassando a finalidade da legitima defesa, a cosmovisão cristã não dá margem para outra interpretação, a vida é um direito natural consagrado no capítulo 20, versículo 13 do segundo livro do pentateuco (Êxodo). Não matarás é o mandamento chave desta questão, isto porque, além do fato de as armas da milícia não serem carnais, conforme 2 Coríntios 10:4, não é de nossa competência matar por qualquer outro motivo que não esteja caracterizado como legítima defesa. Diferente da lei civil e a lei eclesiástica, sujeitas a mudança, a Lei Moral de Deus[2], presente nos 10 mandamentos, é boa para todos os homens, ainda vige na Igreja, e cumpre seu papel influenciando e protagonizando grandes civilizações, tratando-se de verdadeiras leis naturais da humanidade. Na alçada precisa de Solano Portela:

“A lei moral: tem a finalidade de deixar bem claro aos homens os seus deveres revelando suas carências e auxiliando-o a discernir o bem do mal. Como tal, é aplicável em todas as épocas e ocasiões e assim foi apresentada por Jesus, que nunca a aboliu. […] Note que os Dez Mandamentos, ou a Lei Moral de Deus, possui validade total, isto é: tanto histórica – está entrelaçada na história da revelação de Deus e da redenção do seu Povo; como didática – ela nos ensina o respeito ao nosso Criador e aos nossos semelhantes; […] como normativa – ela especifica com bastante clareza o procedimento requerido por Deus a cada uma das pessoas que habitam a sua criação, em todos os tempos.”[3]

Biblicamente falando, é o que se espera: nossa tendência é estender esta imposição bíblica para os casos concernentes a morte desejada por um fiel que não deseje o tratamento médico por razões doutrinárias – podemos considerar um absurdo que este fiel negligencie a intervenção médica, entendemos como suicídio, e enquadramos tal fato de forma semelhante a doutrina Católica Romana que entende-o como pecado mortal. Sobre o valor que a vida humana deve ter aos nossos olhos, preleciona Wayne Grudem com profundidade:

“Esse fato garante a relevância da nossa vida. Percebendo que Deus não precisava nos criar e que não precisa de nós para nada, poderíamos concluir que nossa vida não tem a menor importância. Mas as Escrituras nos dizem que fomos criados para glorificar a Deus, indicando que somos importantes para o próprio Deus. Essa é a definição final da verdadeira importância ou relevância da nossa vida: se somos de fato importantes para Deus por toda a eternidade, então que maior medida de importância ou relevância poderíamos querer?”[4]

Não entrando no mérito das divergências teológicas, é preciso compreender a perspectiva jurídica em torno do assunto, o que não se confunde com a determinação cristã de preservar a vida. Vivemos em um ambiente de liberdade religiosa, quiçá o melhor e mais avançado do mundo, sob a égide de um Estado Laico colaborativo que garante o exercício pleno da fé, assim esta será nossa ótica no presente artigo.

Sim, a vida é um direito natural, mas há outras ponderações sobre a morte do capaz (aquele que possui todas as suas capacidades mentais, quer por já ter idade civil – maioridade – quer por ter sanidade mental) que você precisa saber, mais especificamente sobre um conflito entre o conteúdo da nossa fé e princípios constitucionais. Saímos do campo da nossa obrigação como crentes no Salvador e no exercício do amor e misericórdia ao próximo (como os evangélicos que montaram um acampamento no Rio Grande do Norte, evitando pelo menos 16 suicídios[5]) para garantia de liberdade religiosa. Assim como queremos exercitar a fé em Cristo, consolidada na compreensão reformada, devemos deixar que outros, com base em suas convicções, mesmo que de forma diversa a nossa, assim o façam: isto é liberdade religiosa, a qual tanto apreciamos para nós, mas as vezes não para os outros…

Ao sabor das relações humanas e nas milhares de confluências entre seus atos, não é raro que princípios basilares de qualquer Estado colidam. Tanto é assim que a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana e a própria vida, invariavelmente, confrontam-se neste tablado, senão vejamos: Na hipótese de que determinado fiel suplica pela efetivação da garantia constitucional de liberdade religiosa em detrimento de sua própria vida (ex. testemunhas de Jeová e transfusão de sangue)[6], quando maior e plenamente capaz, estamos diante da autodeterminação derivada do princípio da dignidade da pessoa humana preservada, senão vejamos:

No caso concreto de prescrição médica por via de tratamento contrário à convicção religiosa do paciente, embora lhe possa preservar a vida, retira do fiel a dignidade proveniente de sua crença religiosa, tornando o restante de sua existência desnecessária, ou até mesmo uma afronta ao Deus de sua fé!

Neste particular, o Estado, em nenhuma de suas facetas, poderá tolher o Direito de escolha do fiel, direito fulcrado na preservação de sua dignidade, sendo uma clara afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Como já referido, tanto o Direito à liberdade de pensamento e de crença quanto o Direito à intimidade e à vida privada dos cidadãos, bem como o Direito à vida, são garantias constitucionais expressas no Texto Magno. A dignidade da pessoa humana deve ser o norte da aplicação do Direito em nossa Nação, sendo ele um dos fundamentos do Estado Democrático e da República Brasileira (art. 1º, III, da CRFB/88). Assim, todos os princípios constitucionais devem se confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformar-se com ela.

Com efeito, sempre que a garantia constitucional religiosa de algum fiel estiver, na prática, submetendo a risco a vida de terceiros, mesmo que também fiéis, mas sem exercício pleno e indubitável da autonomia de vontade de cada um, verifica-se afronta, neste particular, ao Direito constitucional da dignidade da pessoa humana. Então, outras perguntas surgem: E quando os pais negam o direito à vida de um filho fundamentado na crença? Ou de um idoso senil? Ou, ainda de uma pessoa que não detêm capacidade mental plena? Estas perguntas serão respondidas na segunda parte deste artigo, na próxima semana, aqui no Voltemos ao Evangelho. Não perca!

[1] KELLER , SHAMMAS. Catecismo Nova Cidade. Disponível em: < http://www.monergismo.net.br/textos/catecismos/Monergismo-catecismo-nova-cidade_Keller-Shammas.pdf > Acesso em 31/05/2019.
[2] PORTELA, Solano. Os Três Aspectos da Lei de Deus. Disponível em: < https://www.solanoportela.net/palestras/tres_aspectos.htm > Acesso em 31/05/2019.
[3] PORTELA, Solano. Os Três Aspectos da Lei de Deus. Disponível em: < https://www.solanoportela.net/palestras/tres_aspectos.htm > Acesso em 31/05/2019.
[4] GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática: Atual e Exaustiva. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 362
[5] Evangélicos montam acampamento e evitam suicídios, no RN. Disponível em: < https://guiame.com.br/gospel/mundo-cristao/evangelicos-montam-acampamento-em-ponte-e-evitam-pelo-menos-16-suicidios-no-rn.html > Acesso em 01/06/2019
[6] “Há décadas, as Testemunhas de Jeová deixaram clara a sua posição. Por exemplo, forneceram um artigo para The Journal of the American Medical Association (27 de novem- bro de 1981; reimpresso em ‘Como Pode o Sangue Salvara Sua Vida?’, páginas 27-9).* Esse artigo citou Gênesis, Levítico e Atos. Disse: “Embora estes versículos não estejam expressos em termos médicos, as Testemunhas consideram que proíbem a administração de transfu- são de sangue total, de papas de hemácias, e de plasma, bem como de concentrados de leucócitos e de plaquetas.” O compêndio Emergency Care (Atendimento de Emergência), de 2001, sob “Composição do Sangue”, declarou: “O sangue é composto de vários elementos: plasma, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas” Portanto, em harmonia com os fatos da medicina, as Testemunhas recusam a transfusão de sangue total ou de qualquer dos seus quatro componentes primários. Publicado pelas Testemunhas de Jeová e Extraído do site. Disponível em: <http://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp=-t2004445/?q=transfus%3C%3Aoddedsangue&p- par>. Acesso em: 9 abr. 2015.

Por: Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Traduzido com permissão. Original: Dignidade da Pessoa Humana: entre a vida e a liberdade religiosa.