Caminhar é servir

Leitura Bíblica: Marcos 1.21-45


“É aqui que vemos o início da tragédia: a multidão chegou, mas eles vieram porque queriam algo de Jesus. Eles não vieram porque o amavam; eles não vieram porque vislumbraram alguma nova visão. Na verdade, eles queriam apenas usá-Lo” – William Barclay

A cena é muito bem apresentada. Marcos organiza uma série de eventos da história de Cristo como se todos tivessem acontecido num período de um dia (cf. vv.32, 35). E nesse dia, Marcos emoldura essas estórias entre dois eventos interessantes, que servem como início e fim de sua perícope: primeiro um exorcismo (1:21-28), e então a cura de um leproso (vv.40-45). Ambos os eventos têm em comum a manifestação da autoridade divina de Jesus sobre males físicos e espirituais. Ambos demonstram o modus operandi de Cristo em seu ministério e servem como modelo de aprendizado para os discípulos. Ambas as estórias apontam para a verdadeira identidade de Jesus, sendo que para o endemoninhado, Jesus é o Santo de Deus (v.24), e para o leproso alguém digno de adoração (v.40). E por fim, ambas as estórias terminam com um relato da expansão da fama de Jesus pelas regiões vizinhas (vv. 28, 45). Marcos parece ter pensado muito bem para apresentar dessa forma a história de Jesus aqui. Mas, o que ele quer nos ensinar com isso?

Eu acredito que a resposta a essa pergunta, encontra-se nas três estórias colocadas entre o exorcismo e a cura do leproso. Trata-se de três eventos narrados em poucos detalhes, mas que acrescem à sua estória informações importantes. Primeiro Marcos nos apresenta a cura da sogra de Pedro, que estava de cama em função de uma febre (vv.29-31); depois ele nos conta sobre os muitos milagres que teria realizado à porta da casa da casa de Simão (vv.32-34); e por fim, nos conta sobre a postura de Jesus a respeito de sua missão (vv.35-39). E ao colocar esses três eventos em sequência, Marcos nos apresente três diferentes perspectivas sobre quem é Jesus.

A Perspectiva da Multidão

Ao que parece, a multidão conhecia a Jesus apenas por sua fama. Aquele ensino que havia originalmente maravilhado as pessoas (vv.21-22), parece ter sido esquecido diante dos atos poderosos que realizava (vv.27-28). Quando Jesus manifestou sua autoridade sobre o mundo espiritual ao expulsar um demônio com suas palavras, sem o costumeiro uso de adereços místicos, as pessoas viram Nele alguém com um tipo de autoridade que eles não conheciam (v.27). Quem Ele é, a multidão não sabe, mas ela sabe o que Ele é capaz de fazer. E baseado nisso, a fama de Jesus começou a se espalhar (v.29).

E por isso não nos surpreende que pouco à frente na narrativa nós encontramos pessoas de toda a cidade de Cafarnaum trazendo até Jesus pessoas doentes e endemoninhadas (vv.32-33). Algo realmente novo estava acontecendo nesse vilarejo da Galiléia (v.27), e as pessoas passaram a encontrar em Jesus um meio para receberem o que procuravam. Para eles, Jesus era a resposta para o seu sofrimento.

A Perspectiva dos Discípulos

Agora, surpreendente é o fato de que os próprios discípulos se deixaram levar pelos aplausos da multidão. Nessas três estórias, os discípulos aparecem apenas duas vezes, e nas duas ocasiões eles parecem mais interessados neles mesmos do que no próprio Senhor. Na cena da cura da sogra de Pedro, são os discípulos que O procuram para contar-lhe sobre o problema deles (v.30). Quase despercebidos na narrativa, os discípulos não perderam tempo em avisar o Senhor sobre a enfermidade da sogra de Pedro. E aqui, vemos um paralelo muito interessante com a cena da multidão: os discípulos, como a multidão que não o conhecia, viam a Jesus como um meio para receber o que eles precisavam.

E pior, isso acontece novamente na cena seguinte. Enquanto Jesus sai de Cafarnaum a procurar um lugar para orar em solitude (v.35), os discípulos o procuravam por todos os lados (v.36). Mas porque eles o procuravam? Ao que tudo indica, os habitantes de Cafarnaum precisavam que Jesus continuasse a manifestar sua autoridade, curando enfermos e expulsando demônios (v. 37; cf. vv. 33-34), e os discípulos foram os agentes que a multidão usou para reorganizar a agenda do Mestre e adequá-la às suas necessidades (cf. v.38 para resposta de Jesus). E de um modo muito triste, Marcos demonstra que os discípulos, como a multidão, estavam seguindo a Jesus pelas razões erradas. Para eles, Jesus era um meio para receber o que eles entendiam que precisavam.

A Perspectiva da Sogra de Pedro

E junto com essas duas estórias de fracasso, Marcos nos conta a mais surpreendente de todas as estórias dessa perícope. A estória de uma mulher anônima e desconhecida. E pior, não apenas anônima e desconhecida, mas a estória de uma sogra (!). Dentre tantos personagens, Marcos escolheu contar a estória dessa mulher justo aqui. E a respeito dela Marcos escreve apenas uma pequena frase que descreve sua perspectiva a respeito de Jesus: “A febre a deixou, e ela começou a serví-los” (v.31). Dentre todas as pessoas apresentadas nessas três estórias, essa mulher desconhecida, alguém descrita como mãe da mulher de alguém, é ela que o autor usa como modelo para nossa jornada com Jesus. De acordo com Marcos, ao contrário da multidão (que em breve irá voltar-se contra ele), e dos discípulos (que oportunamente o abandonarão), essa mulher entendeu que seguir a Jesus não é uma questão de receber de Jesus alguma coisa, mas de serví-lo. Aliás, eu gostaria que você observasse o pronome no plural: “começou a servílos.” Ela não apenas serviu a Jesus, mas também os discípulos Dele. Com isso, Marcos nos ensina que caminhar com Cristo é servir a Ele e aos Seus seguidores.

Mas, existe algo aqui que é grande demais para deixar de notar. O termo que Marcos usou para descrever o serviço é o verbo grego diaconéö, o mesmo verbo que Marcos usa para descrever a assistência que os anjos deram a Jesus nos dias da sua tentação (1:13). É o mesmo verso que descreve o ministério das mulheres em servir a Jesus durante seu ministério na Galiléia (15:41). Mas, mais interessante, é que Jesus usa o mesmíssimo verbo para descrever sua missão: “Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos” (10:45). Ou seja, a sogra de Pedro já está fazendo por Jesus aquilo o próprio Jesus pretende modelar para seus discípulos. Em outras palavras, dentre todas as pessoas apresentadas nessas estórias, é essa mulher anônima e desconhecida que nos ensina aquilo que o Senhor espera de nós. Em nossa jornada com Cristo, nós fomos chamados para servir e não para receber.

Mas, e o que dizer do leproso? Não foi ele quem reconheceu a autoridade de Jesus (v.40)? Não foi ele que saiu pregando a respeito de Jesus por onde passava (v.45)? Exatamente! Mas é aqui que nós encontramos uma interessante ironia na narrativa de Marcos. Tendo colocado a expulsão de um espírito imundo (v.25-26) e a cura de um leproso (v.42), como moldura dessas estórias, Marcos deixou um último contraste entre o demônio e o leproso: Ambos recebem de Jesus a ordem de ficar em silencio. Os demônios recebem um forte “Cala-te!” (v.25), ao passo que o leproso recebe uma veemente advertência para ficar em silêncio (v.43-44). Entretanto, enquanto o demônio O obedeceu (vv.25-26; cf. v.34), o leproso saiu a propagar mais notícias a respeito de Jesus, aumentando assim a sua fama (v.45). Essa sutil desobediência ajudou ainda mais a fomentar a fama de Jesus pelas razões erradas. Mais uma vez, as notícias de Jesus eram propagadas (cf. v.28), mas elas faziam Jesus parecer um curandeiro e não o Messias que Ele realmente era.

Além disso, a partir da próxima perícope vemos que os ensinos de Jesus geram oposição e não fama (cf. 2:1-3:6). Essa sutil diferença entre a pregação de Cristo e a do leproso sugerem que ainda que tenha sido agraciado com um milagre, o próprio leproso não tinha entendido quem Ele realmente era. E desobediente, o leproso passa a servir os interesses da multidão, que procurava em Cristo alguém para aliviar seus sofrimentos. E aqui vemos a grande tragédia do início do ministério de Jesus: as pessoas procuravam a Cristo para receber dele alguma coisa.

E digo mais: é aqui que encontramos grande parte da tragédia do Cristianismo dos nossos dias. Em nome da manifestação do poder de Cristo, muitos tem feito dele um meio para se receber alguma coisa. Para muitos, Jesus é o meio pelo qual receberão sucesso nessa vida, dinheiro, cura e tantas outras coisas. Ao invés de apresenta-lo por quem Ele é, muitos servem os desejos da multidão e fazem de Cristo um milagreiro, um curandeiro, alguém que tem condição de dar para as pessoas o que elas gostariam, sem qualquer menção do “Siga-me!” que ecoa tão veemente no início do evangelho.

Graças a Deus por essa mulher anônima e desconhecida, que nos ensinou que caminhar com Cristo é uma questão de servir a Ele e aos Seus. E você, como tem servido a Cristo e aos seus discípulos?

Por: Marcelo Berti. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Caminhar é servir.