O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 2)

O desejo de conhecer como uma expressão da Imagem de Deus no homem

“Hoje, muitas pessoas levaram o conhecimento tão longe que elas ficaram céticas em relação ao próprio conhecimento.” Gene Edward Veith, Jr.[1]

A imagem de Deus no homem

As Escrituras ensinam que homem e mulher foram criados à imagem de Deus (Gn 1.27). Foram criados por Deus segundo o próprio modelo divino (Ef 4.24).[2] Isso não significa que o homem seja fisicamente igual a Deus. Deus não tem forma, é espírito (Jo 4.24),[3] nem significa que seja da mesma essência uma vez que ela é incomunicável.[4] Mas, na condição de criatura, ele corresponde a Deus como tal.[5]

A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por intermédio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com Deus. A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento com Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é por ser a imagem de Deus. Não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de Deus. Essa compreensão traz profundas implicações éticas na teologia de Calvino[6] e de Schaeffer (1922-1984).[7]

Essa é a nossa existência autêntica e toda inclusiva.  Deste modo, escreve Spykman (1926-1993), “ser humano é ser a imagem de Deus. Portanto, imago Dei descreve nosso estado normal. Não assinala algo que está dentro de nós, ou a algo acerca de nós, senão a nossa humanidade”.[8]

A imagem de Deus não é algo colado ou anexado a nós, podendo ser tirado ou recolocado. Antes, é algo essencial ao nosso ser.  Interpreta Erickson: “A imagem de Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De toda a criação, somente nós somos capazes de ter um relacionamento pessoal consciente com o Criador e de reagir a Ele”.[9]

Por conseguinte, o homem não simplesmente possui a imagem de Deus, como algo externo ou acessório, antes, ele é a própria imagem de Deus.[10]

A Confissão de Westminster (1647), capítulo IV, seção 2, declara:

“Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.”

O homem foi criado como um ser pessoal que tem consciência e determinação própria. Diferentemente de todos os outros animais, faz a distinção entre o eu, o mundo e Deus. Daí a capacidade de se relacionar com Deus (Gn 3.8-14; Jr 29.13; Mt 11.28-30) e com o seu semelhante, e pode entender (racionalmente) a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn 1.28-30; 2.18,19).[11]

Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o[12] – do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade[13] – e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20).

Nesse contexto, notamos de passagem a inteligência de Adão. Ele possuía condições de discernir as espécies, exercitando a sua capacidade de julgar, atribuindo nomes que, certamente, estavam relacionados às características essenciais dos animais.[14]    O homem percebia a essência da coisa, criando, assim, a linguagem. Ele tinha clareza, discernimento e unidade de pensamento incomparáveis. Sem dúvida, perdemos muito disso com a queda.[15]

Deus delega-lhes poderes para cultivar (db;[‘) (‘abad) (lavrar, servir, trabalhar o solo) e guardar (rm;v’) (shãmar) (proteger, vigiar, manter as coisas)[16] o jardim do Éden (Gn 2.15/Gn 2.5; 3.23), demonstrando a sua relação de domínio, não de exploração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da natureza (Sl 8.6-8).[17]

Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio – que o homem foi bastante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi outorgado.

Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível. “O pensamento e o conhecimento do homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são, todavia em sua essência uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que ele pode ver e tocar”, interpreta Bavinck (1854-1921).[18]

Pensar é um privilégio responsabilizador. O homem foi criado com a capacidade de analisar, duvidar, indagar e escolher livremente[19] o seu caminho de vida.[20]

É capacitado a verbalizar os seus pensamentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por Ele e entendendo a sua vontade, havendo uma compatibilidade entre a criação e a nossa estrutura de pensamento. Deus, obviamente, se comunicava de forma acomodatícia à estrutura intelectual que Ele mesmo nos deu. Portanto, desde o início estava constituída uma comunidade, já que: “Comunicar é uma maneira de compreensão mútua”.[21]

Quando homens e mulheres usam adequadamente dos recursos que Deus lhes confiou para dominar a terra, cumpre o propósito da criação glorificando a Deus. É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela forma legítima como o executamos. Devemos estar atentos ao fato de que o nosso domínio está sob o domínio de Deus. A Criação pertence a Deus por direito; a nós por delegação de Deus (Sl 24.1; 50.10-11; 115.16).[22] Ele mesmo compartilhou conosco este poder, contudo, não abriu mão dele.[23] Teremos de lhe prestar contas.

Por isso, ainda que o nosso domínio seja demonstrado, especialmente pelo avanço da ciência, novos desafios surgem.       A plenitude deste domínio temos em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Adão e Eva, antes de pecar, tinham uma compreensão genuína a respeito de Deus (Cl 3.10).[24]  No entanto, “após a sua rebelião, ficou privado da verdadeira luz divina, na ausência da qual nada há senão tremenda escuridão”, descreve Calvino (1509-1564).[25]

O seu conhecimento tornou-se totalmente nulo quanto à salvação.[26] É bom lembrar que a compreensão não era exaustiva visto ser Deus infinito e inesgotável e, também, que Adão ignorava, em seu primeiro estado, aspectos do ser de Deus, tais como o seu amor redentor, o seu plano salvífico, a sua misericórdia etc.

A queda trouxe sérias consequências: a morte e a escravidão. Calvino resume: “Como a morte espiritual não é outra coisa senão o estado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo”.[27]

O homem perdeu totalmente seu discernimento espiritual: ele está morto! O pecado traz em um outro estágio a idolatria visto que o homem sozinho não consegue se relacionar com Deus, e até mesmo ignora o Deus verdadeiro (At 17.22-29).

Comênio (1592-1670) comenta:

É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: Primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquetípico, ou então não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se destaca a onisciência, necessariamente brilhará no homem algo de semelhante a ela. (…) A tal ponto a mente do homem é de capacidade inesgotável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo…

[No entanto] após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se libertar pelos seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.[28]

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 6, responde:

Deus criou o homem bom e à sua imagem, isto é, em verdadeira justiça e santidade, a fim de que ele conhecesse corretamente a Deus, seu Criador, o amasse de todo coração e vivesse com ele em eterna bem-aventurança, louvando-o e glorificando-o.


[1] Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 108.

[2]“Deus é o protótipo do qual o homem e a mulher são meras cópias, réplicas (Selem, ‘estátua ou cópia lavrada ou trabalhada’) e fac-símiles (demût, ‘semelhança’)” (Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1980, p. 78). Para uma interpretação diferente do conceito de imagem e semelhança, apontando na direção de o homem ser “como” Deus, seu representante apenas, nada indicando ontologicamente, ver: Eugene H. Merrill, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 175ss. Para uma crítica a esta posição, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84ss.

[3] J. Gresham Machen, El Hombre, Lima: El Estandarte de la Verdad, 1969, p. 145.

[4]Veja-se: R. L. Dabney, Lectures in Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985, p. 293.

[5] “O homem foi criado à imagem de Deus. Ele é, portanto, semelhante a Deus em todas as coisas nas quais uma criatura pode ser como Deus” (Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,  p. 35).

[6] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[7] “Estou convencido de que uma das grandes fraquezas na pregação evangélica nos últimos anos é que nós perdemos de vista o fato bíblico de que o homem é maravilhoso. (…) O homem está realmente perdido, mas isso não significa que ele não é nada. Nós temos que resistir ao humanismo, mas classificar o homem como um zero não é o caminho certo para resistir a ele. Você pode enfatizar que o homem está totalmente perdido e ainda ter a resposta bíblica de que o homem é realmente grande. (…) Do ponto de vista bíblico, o homem está perdido, mas é grande” (Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 60,61). “Jamais estaremos em condições de tratar as pessoas como seres humanos, de atribuir a elas o mais alto nível de humanidade verdadeira, a menos que realmente conheçamos a sua origem – quem essas pessoas são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos diz que Ele criou o homem à sua imagem. Portanto, o homem é algo maravilhoso. (…) A Bíblia diz que você é maravilhoso porque foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas que você é imperfeito, porque em certo espaço-temporal da História, o homem caiu” (Francis A. Schaeffer, A Morte da razão, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 34). São muito oportunas e sensíveis as analogias feitas por Olyott. (Veja-se: Stuart Olyott, Jonas – O missionário bem-sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012,  p. 75).

[8]Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jenison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 248-249. Do mesmo modo: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 542,564.

[9]Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207.

[10]Veja-se: Morton H. Smith, Systematic Theology, Greenville, South Carolina: Greenville Seminary Press, 1994, v. 1, p. 238.

[11]28 E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. 29 E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. 30 E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez” (Gn 1.28-30). 18 Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. 19 Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles” (Gn 2.18-19).

[12]Ver: Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 97.

[13] É muito interessante a abordagem deste exercício de Adão analisado pelo campo da semiótica. Veja-se: Umberto Eco, A Busca da Língua Perfeita na Cultura Europeia, 2. ed. Bauru, SP.: EDUSC, 2002, p. 25ss.

[14]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591.

[15]Cf. Abraham Kuyper,  Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte,  Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 47-62.

[16]Vejam-se: Gn 3.24; 30.31; 2Sm 15.16; Sl 12.7; Is 21.11-12.

[17]Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 48-50.

[18]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18.

[19] Entendamos aqui que o livremente está relacionado ao fato de que nada havia na natureza humana que o determinasse de forma condicionante a, por exemplo, pecar.

[20] Veja-se: Confissão de Westminster, IX.1-2.

[21] Rollo May, Poder e Inocência, Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 57-58.

[22]Veja-se: John W. R. Stott, O Discípulo Radical, Viçosa, MG.: Ultimato, 2011, p. 45.

[23] Veja-se: Gerard Van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 86-87, especialmente a nota 47.

[24] Vejam-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, p. 40-41; Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 557-558; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97-99, 110; John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 168.

[25]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.18), p. 137.

[26] “Depois da Queda do primeiro homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a salvação sem o Mediador” (João Calvino, As Institutas, II.6.1).

[27]João Calvino, Efésios, (Ef 2.1), p. 51. “O gênero humano, depois que foi arruinado pela queda de Adão, ficou não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu primevo domínio, mas está também mantido cativo sob uma degradante e ignomínia escravidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.6), p. 171). “O primeiro homem foi criado por Deus em retidão; em sua queda, porém, arrastou-nos a uma corrupção tão profunda, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida ficou totalmente obscurecida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 62.9), p. 579). “Todos nós estamos perdidos em Adão” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24).

[28]João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), p. 102-103.