O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 3)

O desejo de conhecer

Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender. – Anselmo de Cantuária (1033-1109).[1]

O desejo de conhecer é um atributo do ser humano. Creio que seja um resquício magnífico da nossa condição de imagem de Deus, ainda que desfigurada.[2] O homem é um ser moral que pode conhecer, escolher e decidir. Isso é magnífico. O pecado, que nos incapacitou espiritualmente, não impossibilitou o nosso conhecimento.

O que parece que perdemos, é a capacidade de unificar o conhecimento, constituindo uma síntese que aponte para Deus como autor de todo saber. Desse modo, podemos ter muitos conhecimentos fragmentados, o que está longe de ser irrelevante, porém, não conseguimos elaborá-los e relacioná-los em um grande sistema coerente e consistente que tenha Deus como Senhor.

Além disso,  e isso é o mais trágico, perdemos em grande parte o senso ético. Conhecimento sem ética, costuma ser altamente perigoso. A ética não tem autonomia. Ela está fundamentada consciente ou inconscientemente na teologia.[3] É por isso, que o rompimento com Deus faz com que o homem construa a sua ética a partir de referencias seculares e idólatras, não mais partindo da revelação.[4] Se a “Ética cristã é a ciência da conduta humana determinada pela conduta divina”, como interpreta Brunner (1889-1966),[5] Deus em sua natureza e revelação deve ser o fundamento da moralidade humana.[6]

Retornando ao nosso ponto, destacamos a célebre frase de Aristóteles (384-322 a.C.): “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer”.[7] Séculos depois, Comênio (1592-1670) acrescentaria como expressão de fé: “nada existe no mundo que o homem, dotado de sentidos e de razão, não consiga aprender”.[8]

A constatação de Aristóteles, é observável desde a infância, quando a criança faz perguntas intermináveis sobre questões para as quais, nós, adultos, há muito iniciados no mundo do saber, nem sempre temos respostas satisfatórias.

O homem carrega consigo o desejo de conhecer; e este desejo o acompanha por toda a sua existência, visto que a onisciência lhe escapa. É justamente por meio do conhecimento que descobrimos os nossos limites. Despedir-se desse desejo é, de certa forma, despedir-se da vida.

O homem, por desejar conhecer, está comprometido com a busca da verdade. A verdade tem seus atrativos próprios que nos fascinam e. de certa forma, sempre a desejamos por perto, ainda que nem sempre com propósitos dos mais nobres.

Acontece que enquanto buscamos a verdade absoluta, na maioria das vezes, temos que nos contentar com as migalhas e fragmentos, por certo significativos,[9] das “verdades” de nossa época ou, que representam apenas uma partícula do universo do saber. Esse é mais um motivo que deve nos conduzir humildemente em nossa apreensão e diálogo a respeito da verdade. A ignorância  costuma ser atrevida e arrogante. O discernimento correto torna-nos modestos.[10]

Por crermos na existência de verdade absoluta, não significa que o nosso conhecimento seja absoluto.[11] Do mesmo modo que crer que exista um Deus não significa necessariamente que me relacione com ele.

Aristóteles (384-322 a.C.), compreendeu a dialética da facilidade e dificuldade em se encontrar a verdade, todavia, não se entregou a esta ambiguidade, antes, procurou um meio que considerou relevante para esta busca:

A especulação acerca da verdade é, num sentido, difícil, noutro, fácil: a prova é que ninguém a pode atingir completamente, nem totalmente afastar-se dela, e que cada [filósofo] tem algo a dizer sobre a natureza, nada ou pouco acrescentando cada um à verdade, embora se faça do conjunto de todos uma boa colheita. (…)

É, pois, com direito que a filosofia é também chamada a ciência da verdade.[12]

Em outro lugar, Aristóteles, demonstra o seu otimismo: “Os homens são, por natureza, suficientemente propensos para o verdadeiro e na maioria dos casos alcançam a verdade”.[13]

Partimos do princípio de que o desejo de conhecer é essencial à natureza humana, como evidência da sua condição de carência e limitação. O que há de mais humano do que o desejo? A filosofia é uma atividade humana, levada a efeito por todos aqueles que têm consciência de sua limitação mas, que, ao mesmo tempo, estão comprometidos em superá-la, sabendo que o caminho do saber é o caminho da angústia[14] e da esperança, da consciência cada vez mais eloquente de nossa ignorância.[15] Mas, como observou Agostinho (354-430): “Aquilo que não temos desejo não pode ser objeto de nossa esperança, nem de nosso desespero”.[16]

Conhecer significa interpretar os fatos, apontando trilhas, descobrindo sinais que precisam ser decodificados, a fim de que, paradoxalmente, emitamos outros sinais, que outros aprendizes do saber interpretarão, deixando também a sua rota, que, como a nossa, não será necessariamente boa para outro aprendiz do saber. Por isso, é que podemos afirmar que a vida é uma interpretação existencial, viva, do que vemos e sentimos. Sou aquilo que sinto. Sinto conforme sou. O sentir está para o ser como o ser para o sentir. O fato é que em grande parte, o nosso comportamento e a nossa vida se constituem em resposta (não simplesmente “reação”) ao que vemos, à nossa leitura vivida do mundo.

O modo como enxergamos o mundo, a nossa cosmovisão, se reflete em nosso modo de viver e de ser. Negar na prática uma cosmovisão professada, não significa não ter cosmovisão, antes, sustentar outra que de modo velado, fundamente a cosmovisão pública que professo. Contudo, aquela é que faz parte do meu cânon interior, da infraestrutura de meu ser. Esta, em geral, não publico. Pelo menos, não conscientemente.

Talvez seja isto que contribua para que o homem seja um desconhecido para si mesmo como para os outros.[17] Não é à toa, que o poeta E. Young (1683-1765) chama o homem de “incompreensível”[18] e Agostinho (354-430) o denomine de “abismo”,[19] Chesterton (1874-1936) o considere comovente,[20] Bavinck (1854-1921) o denomine de “coroa da criação”[21] e Schaeffer (1912-1984) o chame de “maravilhoso”.[22] “Só o homem é miserável”,[23] porque ele conhece a sua miséria. A sua grandeza está em saber, perceber que é miserável.

O homem está acima de toda a criação; ele talvez seja o mais frágil de tudo o que foi criado; todavia ele sabe quem e o que é; é um “caniço pensante”;[24] por isso mesmo, o homem é o milagre mais portentoso de todos:[25] é a obra-prima de Deus.[26]

O homem como ser pensante, traduz em sua vida a necessidade de satisfazer o seu desejo vital de conhecer. É justamente nesta carência que ele revela mais uma vez a sua força: desejar conhecer significa ter consciência de que não se sabe e, concomitantemente, de que se pode saber.

No próximo artigo falaremos sobre Adão e Eva.


[1]Santo Anselmo de Cantuária, Proslógio, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 7), 1973, p. 107.

[2] Veja-se: Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 240.

[3] Veja-se: André Biéler, Calvino, o profeta de La era industrial: fundamentos y método de La ética calviniana de la sociedad, México, D.F.: Casa Unida de Publicaciones, 2015, p. 27.

[4]“Quando perguntamos o que é certo, o que é moral, respondemos à questão não apelando para algum padrão moral independente, como se pudesse haver um padrão para qualquer coisa separado de Deus, e sim apelando para a vontade e natureza do próprio Deus. O certo é o que Deus é e revela para nós” (James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos,  Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112).

[5] Emil Brunner, The Divine Imperative: A study in Christian ethics,  6. imp. London: Lutterworth Press, 1958, p. 86.

[6]Veja-se: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos,  Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112.

[7]Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.1. p. 211.

[8]J.A. Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1985], V, p. 105.

[9] Veja-se a observação pertinente de John Knox a respeito da relevância de todo “pedacinho” de verdade. (John Knox, A Integridade da Pregação, São Paulo: ASTE. 1964, p. 35-36).

[10]Vejam-se:  João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 25), p. 140; João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.1), p. 81.

[11] Cf. Verdade, natureza da:  Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 865-866.

[12] Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, II.1. p. 239.

[13]Aristóteles, Arte Retórica, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), I.1.3.11. p. 30.

[14] Apliquei o coração a esquadrinhar (vrD) (darash) e a informar-me  (rWT) (tur) (investigar, explorar, examinar cuidadosamente) com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; este enfadonho ([r;)(ra`) (mal) trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir (hfnf() (‘ãnãh)(Ec 1.12).

A ideia básica do termo (vrD) (darash)  é buscar com diligência: Moisés diligentemente buscou (vrd) (darash) o bode da oferta pelo pecado” (Lv 10.16). A palavra buscar além deste sentido (Sl 22.26; 24.6 [duas vezes]; Sl 53.3), pode ser traduzida por: requerer (Dt 23.22; Sl 9.12); cuidar (Dt 11.12); investigar (Sl 10.4); se importar (Sl 10.13); esquadrinhar (Sl 10.15); procurar (Sl 77.2); considerar (Sl 111.2); empenhar-se (Sl 119.45); interessar-se (Sl 142.4).

A palavra hebraica (hfnf() (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impotência, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-Lhe indiferente.

hfnf( (‘ãnãh) apresenta também a ideia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).

[15]Blaise Pascal (1623-1662), com a sua costumeira sensibilidade e perspicácia, aconselha-nos: “Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito. (…) A simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha” (B. Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 16), 1973, II.72. p. 57 e 59).

[16] Agostinho, Apud Jürgen Moltmann, Teologia da Esperança, São Paulo: Herder, 1971, p. 11.

[17]C.G. Jung, Psicologia e Religião, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1978, § 140, p. 87. O título da obra de Rollo May (1909-1994) é significativo, O Homem à Procura de Si Mesmo, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1971, 230p.

[18]Edward Young, Pensamentos Noturnos: In: Gabriel V. do Monte Pereira, red. Biblioteca Internacional de Obras Célebres, Lisboa: Sociedade Internacional, (s.d.), v. 13, p. 6231.

[19]Agostinho, Confissões, 9. ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977, IV.14. p. 102.

[20]“O simples homem sobre duas pernas, tal qual é, devia comover-nos mais do que nos comove qualquer música e impressionar-nos mais do que nos impressiona qualquer caricatura” (G.K. Chesterton, Ortodoxia, 5. ed. Porto: Livraria Tavares Martins, 1974, p. 83).

[21]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 187.

[22] “Jamais estaremos em condições de tratar as pessoas como seres humanos, de atribuir a elas o mais alto nível de humanidade verdadeira, a menos que realmente conheçamos a sua origem – quem essas pessoas são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos diz que Ele criou o homem à sua imagem. Portanto, o homem é algo maravilhoso” (Francis A. Schaeffer, A Morte da Razão, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 34). “Na verdade, o homem é uma maravilhosa criação de Deus” (Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 74). “A Bíblia diz que você é maravilhoso porque foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas que você é imperfeito, porque em certo espaço-temporal da História, o homem caiu” (Francis A. Schaeffer, A Morte da Razão, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 34). Ainda que por outros motivos, Shakespeare usa a mesma expressão para o homem: “Que obra-prima é homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso! Nas ações, como se parece com um anjo! Na inteligência, como se parece com um deus! A maravilha do mundo! Protótipo dos animais!” (William Shakespeare, Hamlet, Príncipe da Dinamarca, São Paulo: Abril Cultural, 1978, II.2).

[23]Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 16), 1973, VI. 399, p. 136.

[24] B. Pascal, Pensamentos, VI.347, p. 127.

[25]Sófocles, A Antígone, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1968, 330.

[26] W. Shakespeare, Hamlet, São Paulo: Abril Cultural, (Obras Primas), 1978, II.2.