O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 7)

A religião como fenômeno universal: teísmo e ateísmo

Ainda uma vez, antes de prosseguir e deitar o olhar para diante, ergo, na minha soledade, as mãos para ti, em quem me refugio, a quem no mais fundo do coração consagrei solenemente altares, para que em todos os tempos não cesse de chamar-me a tua voz. Depois se acende, gravada profundamente, a palavra: ao Deus desconhecido! A ele pertenço, ainda que entre a turba dos malfeitores eu tenha até agora permanecido. A ele pertenço, embora sinta os laços que, em meio ao combate, me puxam para baixo e que, embora eu tente subtrair-me, me arrastam para o seu serviço. Quero conhecer-te, ó Desconhecido que penetras até o centro de minha alma, que atravessas minha vida como uma tormenta, incompreensível, aparentado comigo. Desejo conhecer-te, e, inclusive, servir-te. —F. Nietzsche (1844-1900).[1]

Os deuses e seus filhos na história

Na Antiguidade não era raro ou anormal, um homem ser chamado de “filho de deus”. O mundo estava cheio de homens considerados divinos, semideuses e heróis nascidos de “casamentos” dos deuses com os mortais. Tais homens se diziam filhos de deus e, por isso, eram em alguns casos, até mesmo adorados, como manifestações da divindade. Mesmo o Novo Testamento apresenta alguns indícios deste costume entre os pagãos (At 8.9-11; 12.21,22; 14.11,12; 28.6).

O episódio narrado por Lucas em Atos 14.8-18 ilustra bem a crença do povo. E, neste caso, há algo peculiar: Júpiter e Mercúrio, os quais foram identificados pelo povo como sendo Barnabé e Paulo, respectivamente (At 14.12), eram associados à região pela literatura latina.

Ovídio (42 a.C.-18 d.C.), em sua obra principal, Metamorfoses, narra que o pobre casal, Filemon e Báucis, hospedou em sua humilde casa, Júpiter e Hermes (= Mercúrio), que vieram à sua cidade disfarçados de mortais à procura de uma hospedagem, e que não conseguiram pousada em nenhuma das mil casas da região, exceto na do casal. Filemon e Báucis, por este ato de hospitalidade, conta-nos Ovídio, foram recompensados sendo poupados do dilúvio que destruiu as casas de seus vizinhos não hospitaleiros, tendo, inclusive, num ato simultâneo a sua pequena casa transformada num templo e, a pedido receberam a incumbência de serem sacerdotes e guardiões do santuário de Júpiter e, conforme solicitaram, Filemon e Báucis, morreram juntos.[2]

Esta lenda que já era bem conhecida nos tempos de Paulo e Barnabé, esclarece por que tão prontamente o povo os identificou com tais divindades após o milagre realizado por Deus por meio deles.[3]

Além disso, a ideia de que as divindades assumissem temporariamente uma forma humana, já fazia parte da religiosidade do povo. Homero, o grande poeta grego, em sua Odisseia, escrita por volta do séc. IX a.C., registrou: “Os deuses tomam às vezes a figura de estrangeiros, vindos de longes terras e, sob aspectos diversos, vão de cidade em cidade, a fim de ficarem conhecendo quais os homens soberbos e quais os justos”.[4]

Em outra passagem, na mesma obra, Homero narra como a deusa Palas Atena, filha de Zeus (= Júpiter), se aproximou em determinado momento, do seu protegido, Ulisses: “Dele se abeirou Atena, sob o aspecto de um adolescente pastor de ovelhas, gentil como são os filhos dos príncipes, os ombros recobertos de dupla e fina capa, trazendo nos pés reluzentes sandálias e na mão um cajado”.[5]

Ulisses, no diálogo que se sucede após a identificação da deusa, diz: “Deusa, quando te aproximas de um mortal, muito dificilmente este te reconhecerá, por hábil que seja, porque tomas todos os aspectos”.[6]

O fato é que na Antiguidade a história estava repleta de intervenções divinas e, de certa forma o povo era governado pela divindade, visto que, especialmente no Oriente, o rei era tido como filho de algum deus.

No Egito, o monarca reinante era considerado divino, sendo concebido como uma geração física do deus supremo, chamado Ré; o rei era uma espécie de epifania (manifestação) do próprio deus. Na Arábia, o rei era adorado como se fosse deus. Para os sumerianos, babilônios e árabes, o rei era visto como filho adotivo de um ou de vários deuses.

Os colonizadores gregos em suas conquistas chefiados por Filipe da Macedônia (c. 382-336 a.C.) e posteriormente por seu filho, Alexandre o Grande (356-324 a.C.), assimilaram tais ideias mesclando-as com a sua mitologia tradicional,[7] que por si só já era bastante complexa. Dentro deste sincretismo religioso, encontramos o imperador romano, sendo chamado de Divi Filius; os gregos criam que muitos homens descendiam fisicamente dos deuses; a ascendência divina é que determinava a existência dos reis, filósofos, sacerdotes e justos.

Tais crenças proliferavam, assumindo particularidades em cada cidade e até mesmo em cada família, crescendo ainda mais o número de divindades, sendo somado a isto, um processo intenso de “canonização” dos homens.

O historiador Fustel de Coulanges (1830-1889), escreveu sobre este processo:

Todo homem, tendo prestado algum grande serviço à cidade, desde aquele que fundara até outro que lhe conseguira alguma vitória ou aperfeiçoara suas leis, tornava-se um deus para essa cidade. Nem sequer se torna necessário ter sido grande homem ou benfeitor; bastava haver impressionado vivamente a imaginação de seus contemporâneos e ter-se tornado alvo de tradição popular, para qualquer pessoa se tornar herói, isto é, um morto poderoso cuja proteção fosse desejada e cuja cólera temida (…). Os mortos, fossem quais fossem, eram os guardas do país, sob condição de se lhes prestar culto.[8]

Por isso que, por mais que recuemos na história, sempre acharemos no Oriente, povos, tribos e famílias, que alegam serem provenientes de um ancestral divino.[9]

Havia também, homens que eram considerados como que possuidores de habilidades divinas para realizarem milagres, sendo chamados de homens divinos. Existiam os círculos dos “espirituais” que entendiam que uma pessoa podia tornar-se divina mediante o desenvolvimento do conhecimento de Deus. Em síntese, a ideia de filho de deus, refletia uma confusão existente no conceito de divindade e humanidade, acarretando, geralmente, uma diminuição da ideia de deus e, também, por outro lado, uma elevação do homem.[10]

O sentimento religioso e sua universalidade

Rousseau (1712-1778), em seu Contrato Social, afirma que “nenhum povo já perdurou ou perdurará sem religião; se não tiver recebido uma crença religiosa, teria que criá-la para não ser destruído em pouco tempo”.[11] De fato, a Religião é um fenômeno universal. A Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Arqueologia e a História, entre outras ciências, têm demonstrado de forma convincente que a religião está presente em todas as culturas antigas e modernas. Por isso, podemos falar do homem como sendo um ser religioso.[12]

O homem procura desesperadamente um significado para a sua vida, tentando encontrar um equilíbrio entre os seus extremos existenciais: a vida e a morte, o ser e o nada, a ordem e o caos. Dentro desta perspectiva, o caminho religioso é quase que invariavelmente seguido pelo homem na busca de significado para o seu existir.

A experiência religiosa é universal, assumindo características pessoais e, ao mesmo tempo universais. Do mesmo modo que minha experiência é particular e pessoal, ela tem em si os mesmos ingredientes da experiência do outro: todos desejam o mesmo equilíbrio, ainda que não pelos mesmos caminhos e com nomes diferentes. A religião é um apanágio do ser humano.

O etnólogo Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro Magia, Ciência e Religião, com esta afirmação: “Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia”.[13]

Na Antiguidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco, *** escritor e filósofo grego (50-125 A.D) e outros, constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus.[14]

Em frase atribuída à Plutarco,[15] encontramos uma descrição desse fenômeno:

Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem leis, sem uso de moedas como dinheiro, sem cultura das letras. Mas um povo sem Deus, sem oração, sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, tal nunca se viu.

Calvino (1509-1564) acentua em lugares diferentes:

A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem que algum criador existe. (…) Certamente que a religião nem sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo.[16]

Portanto, até os próprios ímpios são para exemplo de que vige sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus”.[17]

 

A palavra religião

Mas, o que significa religião? Ainda que não possamos responder à questão apenas pela simples explicação da palavra, acreditamos que esta pode fornecer-nos algumas pistas. A palavra “religião” é de origem incerta. Cícero (106-43 a.C.), associa a palavra ao verbo latino “relegere” (reler, ler com cuidado).[18] Cícero, assim explicou:

Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto divino e por assim dizer os reliam atentamente foram chamados de religiosos de relegere, como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes de intellegere; de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de legere que está presente em religião.[19]

Deste modo, a religião seria o estudo diligente acompanhado da observância das coisas que pertencem aos deuses.[20]

No entanto, a explicação mais famosa, relaciona a origem da palavra à “religio” e “religare” (religar) trazendo a ideia embutida de “religar-se com Deus”. Essa explicação encontra-se em Lactâncio (c. 240-c. 320) – Divinae Institutiones, (c. 304-313) e Agostinho (354-430) – De Civitate Dei[21] e De Vera Religione.[22]

Lactâncio que discorda da explicação de Cícero, diz:

Nós dissemos que o nome religião (religionis) é derivado do vínculo de devoção, porque Deus ligou o homem a Ele, e o prende por devoção; porque nós O temos que servir como um mestre, e ser-Lhe obediente como a um pai.[23]

Agostinho, após falar do que não devemos adorar, afirma: “Que a nossa religião nos ligue, pois, ao Deus único e onipotente”.[24]

Hobbes (1588-1679) em 1651, vai um pouco além, concluindo que a religião é exclusividade do ser humano:

Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião[25] se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra em outras criaturas vivas.[26]

A religião além de inescapável,[27] é modeladora da cultura, sendo, portanto, uma questão de fé e vida.[28] O sentimento religioso está presente em nossas percepções e construções, seja em que nível for. O fenômeno religioso fundamenta-se no fato de que o homem foi criado à imagem de Deus e, também, ao fato de que Deus se revelou sendo possível conhecê-lo.[29] A religião começa, em sua essência, em Deus, o Infinito-Pessoal, que se revela vindo ao nosso encontro.[30]


[1]F. Nietzsche, Ao Deus Desconhecido. Poesia escrita quando Nietzsche tinha menos de vinte anos. Citada por Georg Siegmund, O Ateísmo Moderno: História e Psicanálise, São Paulo: Loyola, 1966, p. 264.

[2]Veja-se: Ovídio, As Metamorfoses, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1983, Livro VIII, p. 214-216.

[3]“Duas inscrições e um altar de pedra foram encontrados perto de Listra, e eles indicam que Zeus e Hermes eram adorados juntos, como divindades padroeiras locais” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU., 1994, (At 14.11-15a), p. 258).

[4] Homero, Odisseia, São Paulo: Abril Cultural, 1979, XVII, p. 162.

[5] Homero, Odisseia, XIII. p. 123.

[6] Homero, Odisseia, XIII. p. 125.

[7]“A mitologia é uma série de mentiras. Mas estas mentiras foram, durante longos séculos, motivos de crença. Tiveram, o valor de dogmas e realidade entre os gregos e latinos. Com esse título, inspiraram os homens, sustentaram instituições respeitáveis, sugeriram aos artistas a ideia de numerosas criações, entre as quais estão grandes obras primas” (P. Commelin, Mitologia Greco-Romana, Salvador: Aguiar & Souza, 1957, p. 5) (Há uma nova tradução dessa obra, intitulada: Mitologia Grega e Romana, São Paulo: Martins Fontes, 1993).

[8] N.D. Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, São Paulo: Hemus, 1975, p. 117-118. O autor apresenta substancial documentação que demostra as afirmações supra.

[9] Cf. J. Jeremias, A Mensagem Central do Novo Testamento, 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 11.

[10] Cf. C.H. Dodd, A Interpretação do Quarto Evangelho, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 335-336.

[11]J.J. Rousseau, Sobre o Contrato Social (primeira versão): In: Rousseau e as Relações Internacionais, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, III.1, p. 167. Esta versão esboçada, Manuscrito de Genebra, é de 1761. Na versão definitiva, publicada em 1762, a questão da religião civil é tratada no capítulo IV. Veja-se: J.J. Rousseau, O Contrato Social e outros escritos, São Paulo: Cultrix, 1975, IV.8, p. 126-134.

[12]“É uma verdade indiscutível que o sentimento religioso é conatural ao ser humano, pois não existe nenhuma sociedade primitiva ou civilizada, que não acredite em seres sobrenaturais ou que não pratique alguma forma de culto” (Salvatore D’Onofrio, Metodologia do trabalho intelectual, São Paulo: Atlas, 1999, p. 13). Geisler e Feinberg dizem que o “o homem é incuravelmente religioso” (Norman L. Geisler; Paul D. Feinberg, Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 269, 278). Do mesmo modo: Ronald H. Nash, Questões últimas da vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 19.

[13] Bronislaw Malinowski, Magia, ciência e religião, Lisboa: Edições Setenta, (s.d.), p. 19.

[14]Veja-se: Cicero, The Nature of the Gods, England: Penguin Books, 1972, I.17; II.4.

[15] Embora leia essa frase em citações desde a minha mocidade, jamais localizei a fonte primária.

[16] João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299. Em outro lugar: “…. tão belo é seu arranjo [dos céus], e tão excelente sua estrutura, que todo seu arcabouço é declarado como o produto das mãos de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 102.25), p. 585). Veja-se também: R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à Teologia Sistemática, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 36-37.

[17] João Calvino, As Institutas, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, I.3.2.

[18]Cicero, The nature of the Gods, II.72-74. p. 152-153.

[19]Cicero, The nature of the Gods, II.28.

[20]Cf. Religio: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek theological terms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, © 1985, p. 262.

[21]Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, (parte I), X.3. p. 373. Veja-se também, Ibidem., X.32. p. 410-414.

[22] Agostinho, A Verdadeira Religião, São Paulo: Paulinas, 1987.

[23]Lactantius, The Divine Institutes, IV.28. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, Peabody, Massachusetts: Hendrickson publishers, © 1994, v. 7, p. 131.

[24] Santo Agostinho, A verdadeira religião, São Paulo: Paulinas, 1987, 55. p. 145.

[25]Expressão já utilizada por Calvino (Ver: As Institutas, I.5.1).

[26]Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 14), 1974, p. 69.

[27] “Nenhum homem pode escapar dessa determinação religiosa da vida, já que Deus é inevitável” (Henry R. Van Til, O conceito calvinista de cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 42).

[28] “A humanidade, tomada como um todo, tem sido, ao longo dos tempos, supranaturalista até o mais profundo de seu ser. Os homens não têm sido capazes de se satisfazer com as coisas do mundo em seus pensamentos nem em suas vidas; eles sempre supuseram um paraíso acima da terra e uma ordem maior e mais sagrada de poderes invisíveis e bençãos por trás daquilo que é visível. (…) A religião tem sido a fonte de toda civilização, a base de toda forma de vida ordenada na família, Estado e sociedade” (Herman Bavinck, Filosofia da Revelação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 51).

[29] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 302.

[30] “Um dos ensinamentos basilares do cristianismo é que Deus decidiu vir aonde estamos. Em vez de esperar que o encontremos, ele vem até nós. Há quem pense que a religião é como subir uma escada para encontrar Deus. Contudo, o cristianismo afirma que Deus resolveu descer aquela escada para nos encontrar e depois nos levar para casa exultantes” (Alister McGrath, O Deus desconhecido, São Paulo: Loyola, 2001, p. 58).