O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 19)

Fundamentos da epistemologia cristã: anotações preliminares

A epistemologia teísta, a doutrina do conhecimento de Deus, implica uma epistemologia geral, uma doutrina do conhecimento de todas as coisas. – John Frame.[1]

10.1.1. O Deus que fala e age[2]

Um ponto estranho ao pensamento grego que, no entanto, é um dos fundamentos da fé cristã, é a convicção de que Deus é um ser pessoal (não apenas uma causa não-causada, ou movente imóvel), e se relaciona conosco, propiciando meios para que também falemos com Ele.

Clark (1902-1985) conclui:

Os herdeiros do pensamento grego acham repugnante a aceitação de informações reveladas por Deus; eles insistem na verdade descoberta por meio de seus próprios recursos; e, se tal não puder ser feito, preferem ficar sem a verdade a recebê-la como um dom de Deus.[3]

As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de Deus”.  A Bíblia parte do pressuposto da existência de Deus. Deus é um ser necessário e concreto.[4]  Antes do que um conceito e mais do que uma teoria ou abstração, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[5]  Muito do seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria e transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).[6]

“Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (Sl 90.2/2Pe 1.20-21).

Em sua narrativa dos atos criadores de Deus, Moisés não se ocupa em falar com mais detalhes a respeito daquele, que mediante a sua Palavra, faz com que do nada surja a vida, criando o universo, estabelecendo suas leis próprias e, avaliando a sua criação como boa. Ele apenas apresenta o Deus Todo-Poderoso exercitando o seu poder de forma criadora, segundo o seu eterno propósito. Deus existe – este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo a sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn 1.1,26,27; Sl 33.6,9; Jo 1.1-3; Hb 11.3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3.19).

O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos, e a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.

Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se distingue da matéria criada. Ele, somente Ele,  é necessário, essencial, eterno e absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é contingente.

Há também uma diferença  Epistemológica porque os escritores bíblicos não estão preocupados em explicar, provar ou demonstrar a existência de Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso. Todo o conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.

Por meio de Isaías, Deus faz registrar: “Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o coração dos contritos” (Is 57.15).

A Palavra de Deus nos ensina que Deus não pode estar limitado pelo universo, que é sua criação: Deus é infinito e, por isso, é imenso e eterno, transcendendo de forma perfeita todas as limitações espaciais e temporais, que são próprias da criatura, não do Criador – entretanto, Deus está presente em todas as suas criaturas e em todos os lugares.

Com isso não queremos dizer que Deus esteja presente no mesmo sentido em todas as suas criaturas. Deus está em todo ser de acordo com a natureza deles. Desse modo, afirmamos que Deus habita de uma forma no homem e de outra no mundo orgânico, de outro no mundo inorgânico, etc. O modo como Deus está em nós, seu povo, é diferente da forma como Ele habita nos incrédulos. Deus está presente agindo soberanamente numa interminável variedade de maneiras.[7]

Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção desta realidade por meio desse Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.

A Bíblia ensina estas duas verdades:

1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.

2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especialmente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28. Calvino (1509-1564) exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”, comenta Calvino (1509-1564).[8]

Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.

Um dos aspectos fundamentais na tentação de Adão e Eva não foi justamente o desejo de conhecer além do que lhes seria permitido? Adão e Eva desejaram a autonomia. Ter um conhecimento independentemente de Deus.[9] Ser iguais a Deus. Autossuficientes. Satanás lhes ofereceu uma cosmovisão concorrente onde o ponto de referência não era mais Deus, mas o desejo pessoal deles.[10]

O desejo de independência os levam a aceitar qualquer aceno secular em detrimento da fé em Deus. Eles não haviam percebido que em relação à Deus a nossa independência é morte.

A partir desse novo ponto umbilical de referência, excluindo Deus ou o deixando em um canto, à margem da história e da sua vida, o homem começa a construir seus ídolos de acordo com a sua nova imagem eticamente caída. Temos aqui o início do humanismo, considerando de forma teórica e prática o homem como centro e medida de toda a realidade.[11]

Algo paradoxal aconteceu aqui: O ser que eu mais admiro é justamente o que eu rejeito por meio de minha desobediência a fim de me tornar igual a Ele por via inversa. A lógica seria que eu desejasse me aproximar cada vez mais da sabedoria de Deus por meio da obediência aos seus preceitos. No entanto, mediante a tentação satânica, sou convencido de que o caminho para me tornar tão ou mais sábio do que Deus é o da subversão de sua autoridade, deificando o homem e a sua vontade.[12] Negando a sabedoria de Deus é que conseguirei ser tão sábio quanto Ele.

Temos aqui uma suspeita moral sobre a integridade do ser de Deus. Eles, começam a inferir: Ele não é tão santo, justo e bondoso como quer nos fazer crer (Gn 3.1-5). O caminho do crescimento, pensam Adão e Eva, é o da desobediência.

Isso consumado, instalou-se o caos na sua vida, em suas relações e na criação. (Gn 3.7-24). A paz da criação estabelecida por Deus foi quebrada ali,[13] ainda que antes, já estivera trincada no coração do homem e da mulher.

As Escrituras nos mostram com insistência, que é Deus mesmo quem nos instrui (Sl 32.8-9).[14] No entanto, curiosamente, nossos primeiros Pais que tinham a presença contínua de Deus com eles, rejeitaram a instrução divina, preferindo a sabedoria que supostamente viria da árvore no Jardim do Éden.

Narra Moisés: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento (שׂכל) (śâkal), tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gn 3.6). Eles desejavam o sucesso por seus próprios meios, mas, conheceram o fracasso por serem guiados simplesmente por suas sensações em oposição à ordem divina.

O entendimento proposto por Deus nunca pode começar por um ato de falta de entendimento que se concretize em desobediência à sua Palavra. Antes, deve começar pela obediência aos seus preceitos e, ele amadurece no processo de aprendizado da obediência.

Em outras palavras, aprendo a obedecer obedecendo. E, enquanto obedeço vamos nos afeiçoando à instrução de Deus e experimentando os seus frutos em nossa vida.

A atitude de Adão e Eva, diferentemente, revelou falta de entendimento que se agravaria na concretização consumada deste comportamento carente de fé em Deus. Esse quadro de desobediência só seria revertido definitivamente por meio da obediência perfeita de Cristo, nosso Senhor.[15]

Em Cristo podemos ter um verdadeiro conhecimento dos fenômenos e de Deus que se revela. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de que há um mundo real e, que este mundo é acessível. Não enxergamos simplesmente miragens, antes, temos contado com a realidade que é autoevidente. Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam por questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo conhecer, e chegar a um grau bastante consistente de senso-comum.

Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, submeter as nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade. A ciência é transitória e, justamente é transitória por ser uma ciência humana, em construção e depuração.[16] No entanto, talvez falte a ela a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[17] Mas, deixemos para explorar esse ponto mais à frente.


[1]John M. Frame, A Doutrina do Conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 25.

[2] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Deus que fala: estudos no Salmo 19, Goiânia, GO.: Editora Vila Nova, 2016.

[3]Gordon H. Clark, De Tales a Dewey,  São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 163.

[4] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 72.

[5]  Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.

[6]“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).

[7] Veja-se: João Calvino, As Institutas, I.16.3.

[8] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.

[9] “A serpente estava tentando fazer com que Eva adotasse uma sabedoria autônoma, isto é, sabedoria que já não dependeria de Deus como sua fonte. Em lugar de a admiração por Deus produzir nela uma submissão à sábia vontade dele, a admiração pela sabedoria independente produziu nela rebeldia conta a vontade de Deus” (P. Tripp, Admiração, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 74).

[10] Veja-se: R.K. Mc Gregor Wright, A Soberania Banida, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 248.

[11]“A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o homem como a medida de todas as coisas” (R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 33). Na provável primeira carta que Calvino escreveu depois de ter se fixado em Genebra (1536), alegra-se com o avanço da Reforma e a consequente diminuição da superstição e idolatria. Então diz: “Deus permita que os ídolos sejam erradicados também do coração” (Carta escrita ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536. In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30).

[12] Devo parcialmente essa observação ao Rev. Ricardo Rios que, em correspondência privada (08.06.18), disse: “A minha tese é que o ateísmo é uma resposta aos ditames de Deus. Como eu não posso seguir suas ordenanças, eu nego que elas existam. A autonomia é uma deificação humana”.

[13] Cf. P. Tripp, Admiração, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 22.

[14]Instruir-te-ei (שׂכל) (śâkal) e te ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob as minhas vistas, te darei conselho” (Sl 32.8). A palavra aqui traduzida por “instrução”, é traduzida também por “entendimento” (Gn 3.6; Sl 14.2; 53.2; 2Cr 30.22); “inteligência” (Jr 3.15); “atentar” (Sl 106.7); “prudência” (1Sm 18.5; Sl 2.10; 94.8; 111.10; Is 52.13); “êxito” (1Sm 18.14,15,30; 2Rs 18.7); “discernimento” (Sl 36.3); acudir (Sl 41.1). A palavra se refere “à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (…) Designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é a ênfase no ser bem-sucedido” (Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p 1478). Vejam-se: William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, p. 789-790; Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.

[15]“Ele [Jesus Cristo] tornou-se o Autor de nossa salvação, visto que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão através de um ato contrário de obediência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 137-138).

[16] Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K. R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).

[17]Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003,  , p. 21.  À frente: “A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar”  (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20).