Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 9)

O significado das expressões "iniquidade" e "transgressão"

Este post faz parte da série Salmo 32.

A intensidade do pecado

De forma paralelística Davi emprega quatro palavras para descrever a amplitude e intensidade do seu pecado. Cada uma delas reflete a reação do pecador diante de Deus e de seus mandamentos. Ao mesmo tempo, o salmista deseja ressaltar a grandiosidade do perdão de Deus.

Iniquidade transgressiva 

“Bem-aventurado aquele cuja iniquidade (pesha’) (“transgressão”, “violação”) é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32.1)

“Confessei-te   o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões (pesha’); e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado” (Sl 32.5).

A palavra traduzida por “iniquidade” (Sl 32.1) significa revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade (boa ou má), ultrapassando o limite estabelecido, cometer uma fraude. (Ex 22.9; 2Rs 3.7; 8.20; 2Cr 21.8)

Pela ótica do transgressor – que rompe com o poder legítimo –, o que houve foi libertação; uma rebelião que elege um novo senhor que nada mais é do que o nosso ego com as suas inclinações, interesses e desejo de egorreferência. Agora, segundo pensa, assumiu o real controle de sua vida elegendo o seu eu como prioritário em detrimento de qualquer outra relação 

  • de autoridade (Deus), 
  • de amizade e lealdade (Urias), 
  • senso de dever e honradez (Reino e família) ou 
  • de respeito e integridade de caráter (em relação à Bate-Seba).

Desse modo, a palavra tem o sentido de rompimento de relacionamento, envolvendo a ideia de abandono de compromissos assumidos; uma quebra intencional de uma norma ou padrão; uma rebelião. Quando se refere a Deus, é uma “afronta ostensiva dos homens à pessoa de Deus”, pontua Luc. 

Iniquidade, no Salmo 32, portanto, significa uma quebra proposital de um pacto e, consequentemente, de uma confiança depositada. É uma subversão intencional e consciente da Lei e do governo de Deus. É como alguém que ergue o punho contra o padrão estabelecido por Deus. É uma provocação aberta, explícita e descarada feita pelo homem a Deus.

A palavra tem um amplo emprego, sendo proveniente da esfera política (2Rs 1.1; 3.5, 7; 8.20, 22; 2Cr 21.10) englobando o campo jurídico e familiar. 

Davi quando poupou a vida de Saul pela primeira vez, mostrou-lhe a orla do seu manto que cortara, dizendo: 

Olha, pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão. No fato de haver eu cortado a orla do teu manto sem te matar, reconhece e vê que não há em mim nem mal nem rebeldia (pesha’), e não pequei contra ti, ainda que andas à caça da minha vida para ma tirares (1Sm 24.11). 

Rebelião contra Deus

No entanto, a palavra se concentra de forma mais intensa na rebelião contra Deus. 

Por meio de Isaías, Deus se refere deste modo ao povo de Israel: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados (pesha’) contra mim” (Is 1.2).

“O sentido predominante de pesha’ é o de rebelião contra a Lei e a Aliança de Deus, e, por conseguinte, o termo é um substantivo coletivo que denota a totalidade de iniquidades e um relacionamento fraturado”, escreve Livingston (1916-2012). 

Esta atitude gera um rompimento entre Deus e o homem. Sem que muitas vezes nos demos conta, a transgressão se constitui em um peso sobre nós. Este é o juízo condenatório de Deus: “A terra cambaleará como um bêbado e balanceará como rede de dormir; a sua transgressão (pesha’) pesa sobre ela, ela cairá e jamais se levantará” (Is 24.20).

Esta é a confissão do povo de Israel: “Porque as nossas transgressões (pesha’) se multiplicam perante ti, e os nossos pecados testificam contra nós; porque as nossas transgressões (pesha’) estão conosco, e conhecemos as nossas iniquidades” (Is 59.12).

Davi, carrega consigo a consciência de ter o seu pecado continuamente presente diante de seus olhos. O sentimento de culpa o corrói: “Pois eu conheço as minhas transgressões (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

A transgressão não é simplesmente um ato isolado. O seu desejo está arraigado no coração. O pecado não está simplesmente aonde vamos – ainda que haja lugares que estimulem mais a combustão pecaminosa –, mas, levamos conosco, para aonde nos dirigimos e nos encontramos.

O próprio Davi reconhece que o desejo de transgredir está no coração do ímpio. Ele alimenta isso no seu coração, no centro vital de sua existência.

A transgressão reflete a falta do temor de Deus: “Há no coração (leb) do ímpio a voz da transgressão (pesha’); não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl 36.1).

Soberba e transgressão

A soberba é uma fonte de transgressão. Notemos que Davi inicialmente sentiu-se seguro, pensando ter o controle total da situação. Ele julga ter um plano perfeito e não precisa prestar contas a ninguém. Conforme as circunstâncias foram se apresentando, ele tem o plano “b”, o “c” e quantos outros fossem necessários. Ele de fato se rebelou contra Deus; a soberba o dominou. 

Já que Urias não cedeu, o melhor era eliminá-lo. Melhor ainda, cogitou: Fazê-lo pelas mãos dos inimigos em um combate; nada mais natural. Afinal, quantos morrem em uma guerra? Talvez até pudesse condecorá-lo após a morte por ato de bravura, especulo. Davi racionalizou apoiado pelo seu desejo concupiscente.

No salmo 19, Davi suplica a Deus: “Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão (pesha’) (Sl 19.13). 

Há sempre o perigo de nos sentirmos seguros demais, quando nos julgamos autossuficientes; quando supomos poder decidir sozinhos o que vamos fazer sem a orientação de Deus. Obviamente aqui as armadilhas e quedas múltiplas já estão armadas.

A nossa queda se avizinha quando nos julgamos seguros para fazer o que queremos, dando rédeas soltas aos nossos desejos independentemente de Deus e de sua Palavra. 

No salmo 51 Davi confessa que sabe, tem consciência de suas transgressões: 

Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade (hesed); e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões (pesha’). (…) Pois eu conheço as minhas transgressões (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim (Sl 51.1,3).

O caminho da transgressão é uma loucura que nos faz sofrer: “Os estultos, por causa do seu caminho de transgressão (pesha’) e por causa das suas iniquidades, serão afligidos” (Sl 107.17). 

Contudo, quando estamos dominados, enlaçados por um espírito transgressor, não percebemos; antes, vemos sempre além, um novo passo para a consecução de nossos planos. A transgressão nos enlaça. No exercício desta suposta liberdade prestamos um serviço escravo ao pecado que domina de forma cada vez mais intensa a nossa mente e se manifestará em nossos lábios, nos enlaçando:

Pela transgressão (pesha’) dos lábios o mau se enlaça, mas o justo sairá da angústia. (Pv 12.13).

No muito falar não falta transgressão (pesha’), mas o que modera os lábios é prudente. (Pv 10.19).

Na transgressão (pesha’) do homem mau, há laço, mas o justo canta e se regozija. (Pv 29.6).

Quando a injustiça prevalece por meio dos atos iníquos dos transgressores, parecendo não haver justiça, precisamos ter paciência e, nos firmar na verdade para que não corramos o risco de sermos seduzidos. O fim deles é evidente. Deus tem o absoluto controle sobre todas as coisas: “Quando os perversos se multiplicam, multiplicam-se as transgressões (pesha’), mas os justos verão a ruína deles” (Pv 29.16).

Pode parecer demorado, contudo, o caminho da transgressão é autodestruidor: “Quanto aos transgressores (pesha’), serão, à uma, destruídos; a descendência dos ímpios será exterminada” (Sl 37.38). “Os estultos, por causa do seu caminho de transgressão (pesha’) e por causa das suas iniquidades, serão afligidos” (Sl 107.17).

Por isso, o salmista roga a Deus que o livre de suas transgressões: “Livra-me de todas as minhas iniquidades (pesha’); não me faças o opróbrio do insensato” (Sl 39.8). “Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões (pesha’) (Sl 51.1).

O antídoto contra a transgressão é perseverar no reto caminho do Senhor. Por intermédio de Oséias Deus convoca o povo de Israel ao arrependimento, antes que seja tarde demais. Conclui então: “Quem é sábio, que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba, porque os caminhos do SENHOR são retos, e os justos andarão neles, mas os transgressores (pasha’) neles cairão” (Os 14.9).

O transgressor não sabe andar por caminhos retos; ele gosta da aventura da transgressão, da sinuosidade. O que é reto é uma tentação ao deslize. Como ele carrega dentro de si o desejo pela transgressão, nada que seja justo, reto e puro está imune ao seu desejo de transigir, se rebelar, torcer, contaminar.

Davi suplica: “Livra-me de todas as minhas iniquidades (pesha’); não me faças o opróbrio do insensato” (Sl 39.8).

Na velhice Davi clama pela misericórdia de Deus: “Não te lembres dos meus pecados (hatã’â) da mocidade, nem das minhas transgressões (pesha’). Lembra-te de mim, segundo a tua misericórdia (hesed), por causa da tua bondade, ó SENHOR” (Sl 25.7).

Todas as vezes que conscientemente quebramos a Lei de Deus – desobedecemos a sua Palavra, desconsideramos o seu mandamento −, cometemos transgressão. A rebelião é contra o Senhor que nos instrui por meio de sua Palavra. Nestes casos, o sentimento de culpa é uma manifestação amorosa de Deus para com os seus filhos quando pecam. 

Precisamos reconsiderar o nosso caminho, confessar o nosso pecado e suplicar pelo perdão de Deus. Sentimento de culpa, nesses casos, é o sinal da graça. O perdão é a graça plenificada.

Davi tinha plena compreensão de sua transgressão. Por isso mesmo, ele não se vale de expressões amenas para atenuar ou mascarar os seus pecados. Ele sabe que livre e conscientemente se revoltou contra Deus e contra a sua Palavra.

Resumindo: O pecado sempre envolve a transgressão de algum mandamento divino. É por isso que todo pecado é primeiramente contra Deus ainda que de forma secundária, envolva o outro. É impossível pecar contra nós mesmos, nosso próximo, a natureza e à sociedade em geral, sem pecarmos contra Deus. A nossa ofensa sempre envolve o mandamento de Deus.

O pecado consiste na falta de conformidade com a lei de Deus. Por isso a culpa do transgressor. Independentemente das consequências diretas do pecado, ele sempre traz culpa, ainda que o homem dominado por suas paixões tente eliminar esse sintoma que lhe parece misterioso, mas, sabemos, que é resultante do fato de que Deus criou o homem para se relacionar com Ele em santidade.

Os mandamentos de Deus abrangem toda a realidade e relações. Justamente porque Ele é o Senhor de tudo e, cuida pessoalmente de sua criação, o seu propósito é que a sua imagem refletida no homem se concretize em todas as suas obras.

Pecado é uma falsidade ideológica de nossa natureza essencial, já que fomos criados para glorificar a Deus em nossa alegre e prazerosa obediência. Como imagem, deveríamos refletir em nossa vida e comportamento aspectos da gloriosa beleza de Deus. No entanto, o pecado só trouxe deformidade.

O método de Deus 

Deus em sua Palavra utiliza-se de um triplo método para tratar conosco: 

1) Realça o nosso pecado a partir da sua santidade, demonstrando que todo pecado é uma afronta a Ele.

2) Demonstra as consequências inerentes ao pecado como resultado do governo de um Deus justo que não é indiferente ao mal.

3) Nos convida ao arrependimento de nossos pecados, confissão e reestruturação do que quebramos, demonstrando o seu prazer em nos perdoar pela graça nos reeducando espiritualmente. 

A misericórdia de Deus propicia o perdão. “Quando o pecador se apresenta perante o trono de misericórdia, com sincera confissão, ele encontra a reconciliação divina à sua espera”, exulta Calvino. 

A santidade proposta por Deus para seus filhos consiste na harmonia de sua vida e ação com a beleza da santidade eterna de Deus expressa na sua revelação e, perfeitamente, em Jesus Cristo. No entanto, o pecado nos descaracterizou.