Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 16)

O sentido de "atribuir iniquidade"

 “Não atribui (châshab)  (= imputar, creditar) iniquidade”2

Este é um uso raro da palavra no Antigo Testamento, tendo o sentido de “imputar”.[1]

Foi neste sentido que Simei, após ter ofendido Davi, vendo a maldade que fizera, clama temendo a vingança do rei: “…. Não me imputes (châshab), senhor, a minha culpa e não te lembres do que tão perversamente fez teu servo, no dia em que o rei, meu senhor, saiu de Jerusalém; não o conserves, ó rei, em teu coração” (2Sm 19.19). Davi atendeu a sua súplica poupando-lhe a vida.

Davi considera bem-aventurado aquele a quem o Senhor não atribui pecado. Obviamente, ele sabe que essa não atribuição se deve ao perdão adquirido pela misericórdia de Deus por intermédio de Cristo. A bem-aventurança está em seguir o caminho do Senhor (Sl 1.1). Mas, havendo pecado, não é menos bem-aventurado aquele que é perdoado (Sl 32.1).

Harley interpreta que “a garantia do perdão dada por Javé é afirmada, aqui, por meio de uma metáfora de contabilidade, a fim de comunicar que tal pessoa tem completa segurança de que nada lhe será cobrado pelos pecados passados”.[2]

Num sentido positivo, as Escrituras declaram a respeito de Abraão: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado (châshab) para justiça” (Gn 15.6).

Paulo cita e interpreta esta passagem no Novo Testamento:

Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei. Que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. (Rm 3.31-4.3)

O nosso perdão é justo porque a justiça de Deus satisfeita em Cristo, por graça, foi-nos imputada. Portanto, no perdão não há uma diminuição do sentido e gravidade do pecado, antes a indicação da plena e da santa satisfação de Deus. Na imputação da justiça de Cristo a nós, já não há mais dívida; estamos em paz com Deus (Rm 5.1; 8.1).

Lutero (1483-1546) ao interpretar Gl 1.3, dá um enfoque correto à questão:

Esses dois vocábulos, graça e paz, abraçam o cristianismo universal. A graça perdoa o pecado, a paz tranquiliza a consciência (…). Esses dois termos (…) encerram todo o cristianismo. A graça contém o perdão dos pecados e a paz, uma alegre e tranquila consciência. A paz não pode ser adquirida, se o pecado não foi perdoado, pois a lei acusa a consciência e a aterroriza por causa do pecado e o pecado, que a consciência sente, não pode ser removido por peregrinações, vigílias, trabalhos, esforços, jejuns ou quaisquer outras obras. Pelo contrário, o pecado aumenta com as obras, pois quanto mais nos esforçamos e suamos para remover o pecado, tanto mais o cometemos.[3]

O pecado, inimaginavelmente perdoado, o é, pela graça. Esta é a certeza do salmista: “Se prevalecem as nossas transgressões (pesha’), tu no-las perdoas (kaphar)[4](Sl 65.3).

É Deus mesmo quem nos perdoa. Toda a ênfase do salmo 32 é neste sentido. O perdão pertence a Deus e, Ele o faz por sua livre graça fundamentado na propiciação que se consumaria com o sacrifício único e perfeito de Cristo.

O perdão é nos assegurado em Cristo. Contudo, é por meio da oração e da confissão de nossos pecados que o Espírito Santo nos conduz à certeza em nosso coração de que fomos perdoados e reconciliados com Deus.[5]

Stott (1921-2011) resume bem a questão do perdão conforme é descrito no Salmo 32: “O perdão é então visto como a remoção de um fardo, o encobrimento de uma visão feia, e o cancelamento de uma dívida”.[6]

Calvino (1509-1564) é incisivo:    “Para onde quer que o pecador se volte, ou por mais que ele seja afetado, seu mal-estar em grau algum é aliviado, nem seu bem-estar em algum grau é promovido, até que seja restaurado ao favor divino”.[7]

O fato da gravidade e intensidade do pecado, a situação na qual nos encontrávamos e o preço de nosso perdão recebido inteiramente por graça, devem nos acompanhar. A oração do Pai Nosso que o Senhor ensinou à igreja e a Ceia do Senhor, da qual participamos regularmente, se constituem em lembretes de que fomos perdoados. A misericórdia de Deus nos assiste também aqui.

No estudo destas verdades bíblicas devemos também ser estimulados, por graça, a partilhar desta graça com nossos irmãos os perdoando, conforme nos ensina o apóstolo Paulo: “Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou” (Ef 4.32).

Que Deus em sua infinita misericórdia nos assista nesse santo propósito.

 

[1]Ver também: Gn 15.6 (Rm 4.3); 2Sm 19.19; Sl 32.2 (Rm 4.8). Para maiores detalhes, vejam-se: Leon J. Wood, Hashab: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 543-545; John E. Harley, Hsb: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 303-309.

[2]John E. Harley, Hsb: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, [p. 303-309], p. 305.

[3]Martinho Lutero,  Comentário à Epístola aos Gálatas: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS., Canoas, RS.: Sinodal; Concórdia; Ulbra, 2008, v. 10,  (Gl 1.3), p. 48.

[4]Esta palavra não ocorre no Salmo 32. No entanto, é de grande relevância ao conceito de perdão expresso no Antigo Testamento culminando com a obra completa de Cristo registrada no Novo Testamento. A sua origem é obscura. Ela está ligada ao sacrifício, indicando que alguma expiação foi efetuada. (Ex 32.30; Lv 8.15; Nm 5.8; Dt 21.8; 2Sm 21.3; Sl 65.4; 78.38; 79.9; Is 6.7; Is 22.14; 43.3; Jr 18.23; Dn 9.24; Ez 16.63; 45.20). Para um exame mais detido, sugiro: Richard E. Averbeck, Kpr: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 689-708; H.G. Link; C. Brown, Reconciliação: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 52-70; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 127-131; H. Herrmann, i(/lewj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 3, p. 301-310 (especialmente).

[5] “A confissão e a oração são os meios pelos quais o Espírito Santo de Deus desperta e reforça nossa consciência de perdão” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 182). “De fato o perdão de pecados é realizado definitiva e perfeitamente em Deus, mas nos é dado e apropriado por nós em nossas vidas através da fé e do arrependimento” (Hermann Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 462).

[6] John R.W. Stott, Salmos Favoritos, São Paulo: Abba Press, 1997, p. 45.

[7] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2 (Sl 32.3), p. 45.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.