Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 17)

Os efeitos da disciplina de Deus em nós

“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram (balah)[1] os meus ossos pelos meus constantes gemidos (sheagah) todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio” (Sl 32.3-4).

Neste salmo Davi expressa o seu pecado acompanhado de algumas de suas consequências, mas, também, a bem-aventurança do perdão. Sem dúvida, Davi em seu grave pecado, se tornou para muitos de seus contemporâneos em motivo de desprezo para com Deus e para com a sua Palavra. Agora, no entanto, quando retrata a sua vida após o seu arrependimento e confissão, serve de estímulo e consolo para todos aqueles que buscam o perdão de Deus, encontrando nele, a bem-aventurança divina.

Parece que, quando as coisas caminham bem aos nossos olhos, torna-se muito difícil e quase impossível tomarmos consciência de nossos pecados. Por vezes o pecado só se torna pecado quando fracassamos. Parece que os defeitos ficam com os derrotados. Os vencedores carregam consigo todas as virtudes. Ledo engano.

No entanto, se você tiver uma capacidade grandemente estimulada pelo seu ego, de racionalizar as situações, achando sempre culpados, a questão torna-se ainda mais difícil.

É por isso que as aflições, vezes sem conta, são meios pedagógicos dos quais Deus se vale para nos disciplinar, nos conduzindo ao despertar de nossa consciência quanto ao pecado cometido, e ao arrependimento, buscando o seu perdão.[2]

A disciplina de Deus, é, portanto, uma expressão de sua graça para com seus filhos.

Davi retrata de forma dramática diversas consequências de seus pecados. Outras podemos verificar em sua vida e na de seus familiares. A disciplina de Deus sempre esteve presente em sua vida e de sua família.

Devido ao peso da mão de Deus (4) o salmista sentia inclusive fisicamente as consequências do desagrado divino. A mão de Deus o comprimia em disciplina.

Adams (1929-2020) comenta:

Ele cria que a depressão vinha da parte de Deus e a considerava como o misericordioso castigo de Deus, exortando-o e levando-o ao arrependimento. O sentimento de culpa o esmagava. O “meu vigor” (…) “se tornou em sequidão de estio”. Eram evidentes os efeitos que aquela ansiedade produzira no corpo. Secou-se a saliva de sua boca – reação natural num estado de ansiedade.[3]

O pecado lhe era extremamente pesado: “Pois já se elevam acima de minha cabeça as minhas iniquidades (‘ãwõn); como fardos pesados, excedem as minhas forças” (Sl 38.4).

a. Envelheceram (balah) os meus ossos (3): Toda a sua força se desvanecia. “Seus ossos não se consumiam com a idade, mas com os terríveis tormentos de sua mente”, interpreta Calvino.[4]

Quando Davi falava de seus ossos, na realidade, parece estar falando do corpo inteiro.[5] O seu corpo se desgastava e se consumia. É como se seus ossos sofressem de osteoporose, se desgastando, ficando frágil.

b. Gemidos (sheagah) contínuos (3): A palavra se aplica também ao rugido do leão feroz (Jó 4.10; Is 5.29)[6] e dos leõezinhos (Zc 11.3).[7] Aplica-se também ao gemido humano: quando Jó em desespero amaldiçoa o dia do seu nascimento (Jó 3.24;[8] Sl 32.3).

De forma mais contundente e dolorosa, a expressão é utilizada para descrever o bramido do Messias: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham longe de minha salvação as palavras de meu bramido (sheagah)?” (Sl 22.1).

A dor de Davi além de forte era contínua. Por isso a intensidade e continuidade de seu “bramido”.

c. Perda do vigor (4): A palavra “sequidão” (leshad) que só aparece neste texto, tem o sentido básico de “tostar”. De forma figurada, conforme utilizada pelo salmista, significa “desolado”, destruído”. “Estio” (qayits), refere-se ao sol e ao verão. Davi usa uma forma figurada para dizer que o seu vigor, seu frescor, ficou como que algo destruído, ressecado pelo sol. Davi sentia em seu próprio corpo os efeitos da disciplina de Deus.

Interpreta Adams:

As expressões de Davi mostram quão duros podem ser os efeitos psicossomáticos do pecado. A tormenta dessa condição fê-lo sentir-se como se os ossos do seu corpo estivessem ficando velhos e prestes a quebrar-se. Tanto lhe padecia o corpo que ele soltava gemidos o dia inteiro.[9]

“Não há parte sã na minha carne, por causa da tua indignação; não há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado (hattath) (Sl 38.3), escreve o salmista.

A essência do pecado de Davi consistiu em desprezar a Deus e a sua Palavra. É nestes termos que Natã fala com Davi:

Por que, pois, desprezaste (bazah) a palavra do SENHOR, fazendo o que era mal perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amom. 10Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste (bazah) e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. (2Sm 12.9-10).[10]

O sentido da palavra desprezível é o de atribuir pouco valor a alguém ou a alguma coisa, subestimar.[11] A palavra não é negativa em si mesma no sentido de estar pecando quem se porta desta forma. O que desprezamos é que vai evidenciar se estamos certos ou errados. A Escritura, por exemplo, nos apresenta esta atitude praticada com erros e acertos. O que de mais grave podemos cometer nesta vida é desprezar a Deus e a sua Palavra.

O pecado consciente tem como ingrediente agravante o desprezo para com Deus e sua Palavra.[12]

 

Referências:

[1] Aplica-se à roupa envelhecida (Dt 8.4; 29.5; Js 9.5; Sl 102.26), sandália gasta (Dt 29.5; Js 9.5,13).

[2]“Os homens são incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela força a conhecer-se por si mesmos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em paz cada um se adula em seus pecados; temos que sofrer pacientemente as aflições de Deus. Porque a aflição é a autêntica mestra que leva os homens ao arrependimento para que se condenem eles mesmos diante de Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam” (Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 226).

[3]Jay A. Adams, Conselheiro Capaz, São Paulo: Editora Fiel, 1977, p. 119-120.

[4] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.3), p. 45.

[5]Cf. Jay A. Adams, Conselheiro Capaz, São Paulo: Editora Fiel, 1977, p. 119.

[6]“Cessa o bramido (sheagah) do leão e a voz do leão feroz, e os dentes dos leõezinhos se quebram” (Jó 4.10). “O seu rugido (sheagah) é como o do leão; rugem como filhos de leão, e, rosnando, arrebatam a presa, e a levam, e não há quem a livre” (Is 5.29).

[7]“Este, andando entre os leões, veio a ser um leãozinho, e aprendeu a apanhar a presa, e devorou homens. Aprendeu a fazer viúvas e a tornar desertas as cidades deles; ficaram estupefatos a terra e seus habitantes, ao ouvirem o seu rugido (sheagah) (Ez 19.6-7). “Eis o uivo dos pastores, porque a sua glória é destruída! Eis o bramido (sheagah) dos filhos de leões, porque foi destruída a soberba do Jordão!” (Zc 11.3).

[8]“Por que em vez do meu pão me vêm gemidos (sheagah), e os meus lamentos se derramam como água?” (Jó 3.24).

[9]Jay A. Adams, Conselheiro Capaz, São Paulo: Editora Fiel, 1977, p. 118.

[10]Ele considerou a Deus e a sua Palavra como algo insignificante: “…. desprezou (bazah) Esaú o seu direito de primogenitura” (Gn 25.34). Como também fizera Golias, quando vira o jovem Davi: “Olhando o filisteu e vendo a Davi, o desprezou (bazah), porquanto era moço ruivo e de boa aparência” (1Sm 17.42).

[11] Veja-se: Bruce K. Waltke, Baza: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 164.

[12]Quanto à palavra desprezo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Vivendo com integridade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.