Pregando Cristo no Antigo Testamento (9)

Davi e Golias, Spurgeon

Esta é uma série de postagens sobre como pregar a Cristo no Antigo Testamento. Muitos tem pregado de forma errada usando o Velho Testamento para pregações moralistas ou de auto-ajuda. Pregador, quer aprender a pregar com base no Antigo Testamento? Esta série de postagem lhe dará uma boa introdução.

| Parte 1 | Parte 2 | Parte 3 | Parte 4 | Parte 5 |

| Parte 6 | Parte 7 | Parte 8 | Parte 9 | Parte 10 |

3. A PREGAÇÃO CRISTOCÊNTRICA APLICADA AOS PERSONAGENS BÍBLICOS

3.2. Caminhos para pregar Cristo

No que se refere às passagens biográficas quatro desses caminhos pare­cem ser mais adequados à pregação: o da progressão histórico-redentiva, o da tipologia, o da analogia e o do contraste.

3.2.1. Progressão histórico-redentiva

A história da redenção é o registro dos atos de Deus para redimir o seu povo e restaurar sua criação. Assim, toda ela é centrada em Deus. As narrativas são descrições desses grandes atos e feitos de Deus. “O reconhecimento de que a história redentora é centrada em Deus é importante porque estabelece a ligação com o ato culminante de Deus em Cristo.” Assim, deve-se perceber nas narrativas o pulsar escatológico da salvação de Deus em curso e reconhecer o seu cumprimento na primeira e segunda vindas de Cristo.Localizando a passagem dentro dessa história, pode-se traçar uma linha consistente e segura entre o relato biográfico e Jesus Cristo.

Por exemplo, ao aplicar o método cristocêntrico ao relato do enfrenta- mento entre Davi e Golias em 1 Samuel 17, não isolaremos a passagem apre­sentando “Davi à congregação como um herói cuja coragem devemos imitar ao lutar contra nossos ‘Golias’ particulares”. É óbvio que o texto registra a história pessoal de um jovem que matou um gigante filisteu com apenas uma funda e uma pedra. Uma história única e extraordinária. Entretanto, o interesse do autor bíblico não está aí. Ele quer mostrar que esse enfrentamento é uma

parte importante da história nacional e real de Israel: Samuel acabara de ungir secretamente o jovem pastor como rei de todo o Israel (1Sm 16). Em seguida (1Sm 17), o jovem pastor-rei salva Israel de seu arquiinimigo, matando Golias. A mensagem é: Davi, o rei ungido de Deus, livra Israel e garante sua segurança na terra prometida.

Passa-se, então, à consideração do relato dentro da história redentora. Pergunta-se o que essa passagem ensina sobre Deus e seus atos. Nesse texto deve-se notar que

Davi não depende de sua própria força ou de armas ou de habilidade […] (1Sm 17.45-47). A essência dessa história, portanto, é mais que Israel [sic] vencer o inimigo de seu povo; a essência é que o próprio Senhor derrota os inimigos do seu povo. Esse tema localiza a passagem na estrada principal da história do reino de Deus que leva diretamente à vitória de Jesus sobre Satanás […] Assim, a batalha entre Davi e Golias é mais que uma luta pessoal; é mais que o rei de Israel vencendo um poderoso inimigo – é um pequeno capítulo na batalha entre a semente da mulher e a semente da serpente.

A partir daí, pode-se fazer diversas aplicações dependendo das condições da igreja moderna. Entretanto, a mensagem deve permanecer em torno do confronto entre Deus e os inimigos de seu povo, vencido pela obra de Cristo na cruz e a ser consumada na segunda vinda de Cristo. Esse mesmo conflito básico pode ser visto nos conflitos entre Abel e Caim, Isaque e Ismael, Jacó e Esaú, Moisés e Faraó.

3.2.1. Tipologia

O desvio da tipologização não deve inviabilizar o uso da tipologia na interpretação das narrativas bíblicas. A discussão sobre o que é a tipologia e como pode ser usada é bastante acirrada, mas é evidente que este foi um dos modos pelo qual os autores do Novo Testamento interpretaram o Antigo. Chapell define tipologia como “o estudo das correspondências entre pessoas, eventos e coisas que primeiro aparecem no Antigo Testamento […] para pre­parar ou expressar de modo mais completo as verdades de salvação do Novo Testamento”. O aspecto primário da discussão é se o autor do texto vetero- testamentário compreendia o sentido tipológico do relato. Em alguns casos, especialmente nos salmos e nos profetas, é possível dizer que sim. Entretanto, Greidanus afirma: “Suspeito que a maioria dos tipos não seja profético, mas pessoas e acontecimentos específicos são vistos mais tarde como tendo sig­nificado tipológico”. Ou seja, a maioria dos tipos bíblicos não são preditivos, mas descobertos somente à luz de sua realidade neotestamentária em Jesus Cristo. Isso não significa que devemos impor um novo significado ao texto, mas “simplesmente entender esse acontecimento no seu pleno contexto histórico- redentor”. Isso porque, ainda que a relação só tenha sido vista posteriormente, na perspectiva de Deus ela sempre esteve ali e o texto foi registrado com o propósito implícito de estabelecê-la.

Para que se evite o perigo da tipologização, Greidanus aponta quatro características básicas de um verdadeiro tipo. Um tipo autêntico é histórico, se refere a acontecimentos, pessoas ou instituições. É teocêntrico, isto é, refere- se aos atos de Deus em e por meio de pessoas e acontecimentos. Exibe uma analogia significativa com seu antítipo: deve-se evitar estabelecer a relação através de detalhes. Por último, a relação de um tipo autêntico com seu an­títipo é marcada pela progressão. Disso decorre que não se deve dispensar a interpretação histórico-literária, pois esta servirá de base indispensável para a interpretação tipológica correta. Outro aspecto importante é estabelecer o caráter simbólico da pessoa nos tempos do Antigo Testamento. Se este signi­ficado não estiver presente não é possível aplicar a interpretação tipológica.

Como exemplo da aplicação da tipologia pode-se citar

pessoas como Moisés, Josué, os juízes e os reis, mediante os quais Deus livrou o seu povo e buscou estabelecer seu reinado (teocracia – governo de Deus). Essa obra redentora de Deus por meio de seus líderes ungidos os qualifica como tipos de Cristo, por meio de quem Deus, no final, libertaria seu povo e estabeleceria seu reino sobre a terra. Também descobrimos sumos sacerdotes e sacerdotes que são tipos de Cristo ao oferecer sacrifícios em expiação pelos pecados do povo, e interceder por eles.

Em cada uma dessas situações, o uso da tipologia mostra-se um meio adequado de interpretar e aplicar o texto bíblico. Nelas, o pregador de sermões biográficos terá a oportunidade demonstrar os componentes da obra de Cristo, bem como apresentar os aspectos distintivos e superlativos de Cristo em relação à obra daqueles que ilustraram seu ministério.

3.2.2. Analogia

A analogia também pode ser utilizada na abordagem de textos biográ­ficos. Já foi visto que não se deve, simplesmente, estabelecer relação direta entre o personagem e o crente. Para respeitar a unidade da história redentora e a continuidade entre Israel e a Igreja, o pregador deve perguntar que aspectos semelhantes há entre a relação de Deus com o personagem e a relação de Deus com os crentes da atualidade. O interesse não deve estar apenas na aplicação relevante do texto, mas em estabelecer o ponto de continuidade fundado em Cristo. “… por meio de Cristo, Israel e a Igreja se tornaram o mesmo povo de Deus: destinatários da mesma aliança de graça, partilhando da mesma fé, vivendo a mesma esperança, procurando demonstrar o mesmo amor”. Assim, os atos de Deus em favor dos personagens, seus ensinos e exigências são, em muitos aspectos, aplicáveis às pessoas da atualidade. Chapell orienta que é preciso definir o objetivo planejado pelo Espírito Santo e identificar a necessidade bíblica que os ouvintes compartilham com aqueles que “viviam na situação bíblica que requereu o escrito inspirado” e apresenta o seguinte procedimento hermenêutico:

I. Identificar os princípios redentores evidentes no texto.

  1. Aspectos revelados da natureza divina que concedem redenção
  2. Aspectos revelados da natureza humana que necessitam de redenção

II. Determinar que aplicação esses princípios redentores hão de exercer na vida dos crentes no contexto bíblico.

III. À luz dos característicos humanos comuns ou das condições que os crentes contemporâneos partilham com os crentes bíblicos, aplicar os princípios reden­tores à vida contemporânea.

Greidanus exemplifica que ao se pregar sobre Jacó em Betel (Gn 28.10­22), pode-se “ressaltar que enquanto Israel aprendia a respeito da presença protetora de Deus por meio da experiência de Jacó em Betel antes de sua perigosa viagem, assim Cristo promete estar conosco” em todos os dias de nossa vida (Mt 28.20).

3.2.3. Contraste

O próprio conceito de progressão da história redentora implica no con­traste entre o Antigo e o Novo Testamento, e até mesmo entre este e a atuali­dade. Contudo, isso não inviabiliza o trabalho do pregador. Somente que tais passagens devem ser pregadas à luz da revelação final de Deus em Cristo, demonstrando os contrastes presentes. Esses contrastes são centrados em Cristo, “pois é ele o responsável por quaisquer mudanças entre as mensagens do Antigo e do Novo Testamento”.

Greidanus apresenta dois exemplos do uso do contraste em passagens biográficas. Gideão foi obediente a Deus destruindo o altar de Baal e salvando Israel dos midianitas, porém, mais tarde, fez uma estola sacerdotal e desviou Israel do Senhor (Jz 6-8). Cristo, porém, é o Salvador perfeito que nos liberta de nossos pecados e de nossos inimigos, incluindo a morte, e nos aproxima do Pai numa aliança que jamais será quebrada (Jo 10.27-30). Esdras e Neemias lutaram para que a santidade fosse para além dos limites do templo e incluís­se todo o povo de Jerusalém. Zelaram também para excluir todos os que não pertenciam a Israel. Cristo, porém, desfaz a divisão entre judeus e gentios e faz de ambos um só povo santo ao Senhor (Ef 2.14-18).

Essas quatro abordagens permitem ao pregador tratar o texto com fi­delidade histórica e literária, sem abrir mão de seu compromisso teológico de reconhecer a centralidade de Deus e de seu Cristo em cada passagem da Escritura. Também não o impedirá de ser relevante, uma vez que expõe a seus ouvintes verdades precisas e bem fundamentadas sobre a pessoa, ministério e ensino de Cristo.

[cont.]

Por Dario de Araújo Cardoso em Uma Abordagem Cristocêntrica para os Sermões Biográficos