O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 1)

A dinâmica da graça em pensamento operante (Alguns apontamentos)

O povo grego é o povo filosófico por excelência. – Werner Jaeger (1888-1961).[1]

É necessário que se faça novamente da filosofia uma tarefa séria. Para se possuir qualquer ciência, arte, habilidade, ofício, prevalece a convicção de que seja necessário um multiplicado esforço de aprendizagem e exercício. Se alguém que tem olhos e dedos, recebe o couro e o instrumento, nem por isso é capaz de fabricar sapatos. Ao contrário, no que diz respeito à filosofia, parece dominar presentemente o preconceito de que qualquer um saiba imediatamente filosofar e julgar a filosofia, já que para isso possui a medida na sua razão natural, como se não possuísse igualmente no seu pé a medida de um sapato. Parece que a posse da filosofia reside exatamente na falta de conhecimento e de estudo, e que a filosofia cesse onde começam o conhecimento e o estudo. A filosofia é tida frequentemente como um saber formal e vazio de conteúdo. – G.W.F. Hegel, (1770-1831).[2]

Todo sistema filosófico tem lacunas e defeitos. – Herman Bavinck (1854-1921).[3]

A recusa deliberada da filosofia já é em si mesma, uma filosofia – e uma filosofia que pode envolver os seus proponentes em muitas contradições. – L.S. Vygotsky (1896-1934).[4]

Jamais deixarei de filosofar. – Sócrates (469-399 a.C.).[5]

Introdução

Uma das tarefas da Filosofia é indagar sobre o que se mostra como óbvio. Isso pode ser cansativo e, se não for uma atitude comedida em sua palavra e juízos, pode ser geradora de uma certa aversão. Mas, fazer o quê, já que a filosofia se recusa às férias?[6]

O aparentemente óbvio nem sempre se esgota em sua obviedade ou, de fato é tão simples como o marketing do senso comum nos quer fazer crer. Por outro lado, nem sempre os temas são aparentemente simples e óbvios. Se a Filosofia não tira férias, também não deve bater em retirada.[7] A perseverança em pensar é aqui uma virtude.

Por isso, o melhor que podemos fazer, é investigar. Ou senão, caminhar  com a ousadia de um Dom Quixote, pelas pegadas do respeitado filósofo Dino Formaggio (1914-2008), que apresenta  uma conceituação relativista ao dizer que “arte é tudo aquilo que os homens chamam de arte”. De forma hilária,  Eco  (1932-2016) ironiza a afirmação, declarando que “Belo é tudo aquilo que os homens chamam de belo”.[8] Dessa forma, penso com meus botões, que Filosofia é… não me atrevo a concluir a frase.

Retornando à Filosofia, sublinhamos que essa missão e metodologia podem soar desnecessárias ou até mesmo antipáticas em alguns contextos e circunstâncias. Porém, vencido o embaraço primeiro, resultante, talvez, da demonstração de uma visão mais estreita daqueles que foram acordados, não a sem tempo, do “sono dogmático”, se revelarão, altamente enriquecedoras. É preciso que entendamos que o significado da coisa não deve ser separado do que a coisa é.[9] A essência sempre é mais importante do que a experiência. A experiência, enquanto viva e significativa, tem possibilidade de ser corrigida à luz da essência.

Ainda sigo o princípio de que a melhor definição é a essencial. A indefinição tende a acarretar uma série de inseguranças por um lado, é impropriedades por outro.

Em uma entrevista concedida em 1991, Thomas Kuhn (1922-1996) queixando-se do uso excessivo e inadequado da expressão “paradigma”, que marca o seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, admite que no livro não definira “paradigma” tão rigorosamente como deveria”.[10]

Portanto, sigo aqui a Aristóteles (384-322 a.C.), ao dizer: “Uma definição é uma frase que significa a essência de uma coisa”.[11]

Dito isso, caminhemos em direção da origem da composição da palavra filosofia.

Origem da palavra Filosofia

A palavra Sofi/a (Sabedoria) já aparece nos escritos de Homero e Hesíodo – denotando sempre um atributo, nunca uma atividade[12] –, todavia, o composto filosofi/a (Filosofia) só é encontrado em Heráclito (c. 544-484 a.C.), que o emprega de forma adjetiva.

No Fragmento 35, diz: “Homens que amam a sabedoria (filoso/fouj) precisam ter muitos conhecimentos”.[13]

Já o verbo, nós o temos documentado pela primeira vez em Heródoto (c. 484-420 a.C.). Heródoto – pai da História – narra que, quando Sólon (638 a.C.-558 a.C.), um dos sete sábios da Grécia,[14] foi visitar o riquíssimo Creso (596-546 a.C.), rei da Lídia (c. 560-546 a.C.), este se dirigiu ao sábio dizendo:

A notícia de tua sabedoria (sofi/h) e de tuas viagens chegou até nós; e não ignoro absolutamente que, percorrendo tantos países, não tens outro fim senão o de instruir-te (filosofe/wn) sobre as suas leis, seus costumes e aperfeiçoar teus conhecimentos….[15]

Tucídides (c. 465-395 a.C.), também faz semelhante emprego. Narrando a Oração fúnebre de Péricles (c. 495-429 a.C.) em 431 a.C. – período em que este era chefe de Estado –, por ocasião dos funerais feitos anualmente em Atenas em homenagem aos mortos de guerra,[16] Péricles, em determinado momento, disse:

Somos amantes da beleza (filokalou+/men) sem extravagâncias e amantes da  sabedoria  (filosofou+/men) sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la.[17]

Segundo Cícero (106-43 a.C.) e Diógenes Laércio (3º séc. d.C.),[18] foi Pitágoras (c. 570–c. 495 a.C.) quem atribuiu o título de filósofo a si mesmo. Quando o príncipe Leonte perguntou a Pitágoras em que arte era versado, respondeu-lhe que em nenhuma. Era filósofo.

Ainda segundo Cícero, Pitágoras achava por demais pretensiosa a denominação de Sofo/j, preferindo substituí-la por Filo/sofoj, passando então, a usá-la para si.[19]

Este sentido ético e religioso também é encontrado em Sócrates (469-399 a.C.).[20] Platão (427-347 a.C.) e Sócrates (469-399 a.C.) contrastam a Filosofi/a com a Sofi/a:[21] Esta que é a sabedoria perfeita, pertence somente a Deus. Os homens são apenas filo/sofoj, amantes da sabedoria.[22]

Os Sofistas, em seu subjetivismo, plenamente justificável, diga-se de passagem, desejam reduzir a sabedoria à arte discursiva, retórica, arte que pode ser ensinada com o fim de persuadir, sem maiores compromissos com a verdade.

Enquanto para Platão a sabedoria é uma virtude prática, para Aristóteles (384-322 a.C.), ela é teórica, nos permitindo chegar à verdade das primeiras causas.[23]

No tempo dos Sofistas e de Sócrates (469-399 a.C.), o termo Filosofia era usado para se referir ao cultivo sistemático de qualquer conhecimento teórico, adquirindo em Aristóteles (384-322 a.C.), o sentido de (e)pisth/mh), “uma disciplina intelectual que procura as causas”.[24]

Problema metodológico

Dito isso, devemos destacar que o nosso texto padece de uma dificuldade metodológica que pretendo explicitar de início: o pensamento grego, mesmo no período clássico, não foi uma forma monolítica de interpretar e pensar a realidade. Há épocas diferentes, questões e ênfases distintas.

Além disso, há Escolas filosóficas com pressuposições distintas e preocupações díspares. Assim sendo, aqui temos que ter cautela para não incorrermos no equívoco generalizante e, por isso, reducionista, de tomar um pensamento aqui e outro ali e presumir, apressadamente, termos a amostragem característica do pensamento grego.

Como sabemos, nem sempre, por exemplo, o pensamento individual de Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.), Heráclito (c. 540-480 a.C.), Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) representa o modo habitual ou mesmo majoritário dos gregos verem a realidade.[25]

Tendo isso em vista, sabendo dos perigos, analisemos com cautela o que temos pela frente. Contudo, antes de mergulharmos nesse rio no qual nadarei apenas até onde meu pé pode tocar, deixando o pescoço para fora, trataremos sobre o desejo de conhecer.


[1]Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 9.

[2]G.W.F. Hegel, A Fenomenologia do Espírito, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 30), 1974, p. 42.

[3]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 313.

[4] Prefácio de Vygotsky à tradução das duas primeiras obras de Piaget (1896-1980), publicadas na Rússia. (L.S. Vygotsky, Pensamento e Linguagem, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 18).

[5] Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, 29d.

[6] Inspiro-me aqui em Gilson (1884-1978), que escreveu: “Os filósofos vão às vezes a algum espetáculo de balé, ainda que apenas para se distraírem da filosofia, à qual é preciso saber dar uma folga. Mas ela se recusa a folgar e acompanha o filósofo ao espetáculo” (Étienne Gilson, Introdução às Artes do Belo – O que é filosofar sobre a arte?  São Paulo: É Realizações, 2010, p. 191).

[7] Quando Eric Voegelin (1901-1985) aceitou um convite do conselho diretor de uma instituição para falar sobre “Evangelho e Cultura”, logo no início, declarou: “Um tremendo convite, devo dizer. Ainda assim, aceitei-o – afinal,  de que serve a filosofia se ela não tiver nada a dizer sobre as grandes questões que os homens do presente têm o direito de lhe fazer?” (Leo Strauss; Eric Voegelin, Fé e filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, São Paulo: É Realizações, 2017, p. 167).

[8] Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 38.

[9] “A ciência da definição, da divisão e da classificação, ainda que seja empregada muitas vezes para coisas falsas, não é por si só falsa; nem foi instituída pelos homens, mas descoberta pela própria razão das coisas” (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.36 p. 143).

[10]John Horgan, O Fim da Ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento Científico, 3. reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 64.

[11]Aristóteles, Tópicos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.5. p. 13. Para uma breve discussão a respeito da importância da definição, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015, p. 63-65.

[12] Cf. J. Goetzmann, Sabedoria: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, v. 4, p. 276. Fraile (1909-1970) observa que em Homero, sofo/j “significa homem hábil em artes mecânicas, e por derivação, prudente, astuto, engenhoso, sutil” (G. Fraile, Historia de la Filosofia I (Grecia y Roma), Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1956, p. 4).

[13] Mesmo o composto filosofi/a não sendo encontrado anteriormente, a literatura demonstra outras conjugações com a palavra fi/loj (Cf. Otto Michel, filosofi/a: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 9, p. 173).

[14] Cf. Platão, Protágoras, Belém: Universidade Federal do Pará, 2002, 343a, p. 95.

[15] Heródoto, História, Rio de Janeiro: Ediouro, (s.d.), I.30.         p. 48.

[16] Veja-se a descrição do ritual em Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, II.34. p. 96-97.

[17] Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, II.40. p. 99. Vejam-se, também, Platão,           O Banquete, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, 202ss; Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, 28e-29.

[18]Marcus Tullius Cicero, Tusculanae Disputationes, V.3, 8-9  (Disponível em: https://docplayer.com.br/66164032-Tusculanae-disputationes-marcus-tullius-cicero.html) (Consulta feita em 03.04.2020) e Diógenes Laercio, Vidas, opiniones y sentencias de los Filósofos más Ilustres, Buenos Aires: El Ateneo, (1947), I.8. p. 24-25.

[19] Esta versão que é preservada por Cícero e Diógenes Laércio, ampara-se numa obra – Da Intercepção da Respiração – hoje perdida, de Heráclides de Ponto (c. 390-310 a.C.), antigo discípulo de Platão. (Veja-se: Diógenes Laercio, Vidas, opiniones y sentencias de los Filósofos más Ilustres, Buenos Aires: El Ateneo, (1947), I.8. p. 24-25). Todavia, duvida-se da confiabilidade deste registro (Cf. Filósofo: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 407-408).

[20] Veja-se: Platão, Fédon, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 1972, 62c-69e. p. 69-78.

[21] Por outro lado, Platão identifica a sofi/a com a e)pisth/mh. Veja-se: Platão, Teeteto, Belém, PA.: Universidade Federal do Pará, 1988, 145e. p. 7.

[22] “Chamá-los sábios (sofo/j), Fedro, me parece excessivo e só aplicável a um deus; mas o nome filósofo (filo/sofo) ou um epíteto semelhante lhes caberia melhor e seria mais apropriado” (Platão, Fedro, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Diálogos I), (s.d.), 278d. p. 267).

[23] Veja-se: G. Fohrer, sofi/a: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 7, p. 470-472.

[24] F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um Léxico Histórico, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 187 (Veja-se também, Aristóteles, Metafísica, 1025b-1026a).

Platão (427-347 a.C.), entendia que a e)pisth/mh era o conhecimento verdadeiro e científico em contraposição à do/ca; sendo um corpo organizado de conhecimento, que chamaríamos de “Ciência”, caracterizando-se por ser teórico e prático. Na sua visão, a e)pisth/mh é a forma mais elevada de conhecimento humano. No Mênon, escreveu:

“E assim, pois, quando as opiniões certas (do/ca) são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência (e)pisth/mh), e, como ciência, permanecem estáveis. Por esse motivo é que dizemos ter a ciência mais valor do que a opinião certa: a ciência (e)pisth/mh) se distingue da opinião certa (do/ca) por seu encadeamento racional” (Platão, Mênon, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 98, p. 108-109).

Quanto à perspectiva de Platão, vejam-se também, Platão, Teeteto, 190a-c; Idem, Fédon, 75b-76; Idem, A República, 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 476a-480a; 509d-511e; 514a-521b.

[25]Devo parcialmente esta observação a Forrester. (W.R. Forrester, Christian Vocation: studies in faith and work, London: Lutterworth Press, 1951, p. 121).

Por: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 1).