O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 13)

A pregação cristã

8.1. Homilética e homilia

A palavra “homilética”, é a transliteração do verbo o(mile/w, que significa “conversar com”, “falar”. Este verbo ocorre quatro vezes no Novo Testamento e apenas nos escritos de Lucas (Lc 24.14,15; At 20.11; 24.26). Na Septuaginta, ocorre também 4 vezes Pv 5.19 (“saciar”, no sentido de proximidade); Pv 15.12 (“chegará”, no sentido de “associar-se”); Pv 23.30 (2 vezes).[1]

Na literatura clássica, vemos que Xenofonte (c. 430-355 a.C.) também empregou esta palavra no sentido de “conversação”.[2]

O verbo o(mile/w provém de outra palavra grega, o(/miloj (o(mou= = “junto com” & i)/lh = “uma equipe”, “turma”, “companhia”), que significa, “multidão”, “turma”, “companhia”, “assembleia”. O(/miloj ocorre apenas uma vez no NT e mesmo assim, sem grande fundamentação documental (Ap 18.17).[3]

Na Literatura Clássica, este termo é encontrado em Homero (c. IX séc. a.C.).[4]

Uma outra palavra relacionada com Homilética, é “Homilia” (gr. o(mili/a), derivada da mesma raiz de “Homilética”, significando: “associação”, “companhia”, “conversação”. Ela é empregada apenas uma vez no NT (1Co 15.33), quando Paulo, provavelmente, cita a comédia do prestigiado poeta ateniense, Menandro (c. 342 -c. 291 a.C.), intitulada Thais.[5] Xenofonte (c. 430-355 a.C.) também usou “Homilia” no sentido de “companhia”,[6] “palestra”[7] e “conversação”.[8]

A Igreja Latina traduziu “Homilia” por sermão, passando, então, as duas palavras, num primeiro momento, a serem empregadas de forma intercambiável. Todavia, posteriormente, elas passaram a designar um tipo de discurso; O Sermão,[9] designava um discurso desenvolvido sobre um tema. A Homilia, pressupunha um método de análise, e a explicação de um parágrafo ou verso da Escritura, que era lido durante os cultos.[10]

O uso do termo “Homilética” referindo-se à pregação, data do século XVII, quando foi usado por Baier (1677) e Krumholf (1699).[11]

Creio que a definição de Broadus (1827-1895) a respeito de homilética expressa bem o conceito primitivo da pregação entre os Pais da Igreja: “A adaptação da retórica às finalidades especiais e aos reclamos da prédica cristã”.[12]

8.2. Retórica e Homilética

8.2.1. Definição de Retórica

A palavra Retórica, é uma transliteração do grego R(htorikh/ ( = “eloquência”). A palavra é proveniente de R(h/twr (= “orador público”, “advogado”, “homem de Estado”). Ocorre apenas em At 24.1, no NT. Estas palavras são derivadas de R(h=ma (= “palavra”, “expressão verbal”, “linguagem”, “poema”). Em Aristóteles (384-322 a.C.), R(h=ma significa um verbo, contrastando com um o/)noma, substantivo.[13]

A retórica mantém estreita relação com os sofistas. Górgias (c. 483-c.375 a.C.), o sofista, disse que o objetivo da retórica é “pela palavra, convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho, os eclesiastas na assembleia e em todo outro ajuntamento onde se congreguem cidadãos”.[14] Desta forma, a capacidade do retórico era demonstrada na habilidade de “disputar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto” e isto se revelava na rapidez com que persuadia as multidões.[15] A essência da retórica de Górgias era persuadir.[16] Nisso, a retórica sofista foi muito bem sucedida.[17]

Sócrates (469-399 a.C.) e Platão (427-347 a.C.) manifestaram interesse pelas questões retóricas e seus problemas. Platão, por exemplo, opõe-se à retórica de Górgias, porque ele crê na existência de critérios absolutos e universais, que possibilitem reconhecer o verdadeiro e o justo.[18] É justamente isto que distingue a retórica de Górgias da retórica de Platão. Na perspectiva de Platão, a retórica deveria ser utilizada por pessoas interessadas na verdade.[19]

Aristóteles (384-322 a.C.), definiu Retórica como sendo “a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão”.[20] Segundo ele, a tarefa da retórica, “não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada questão, como sucede com todas as demais artes”.[21]

Dentro de uma perspectiva ética, Aristóteles, observa ainda, que a retórica não deveria ser usada para a persuasão do imoral.[22] Todavia, o mau uso da retórica não anulava o seu valor.[23] A retórica deveria ser útil ao cidadão. Esta é a sua função política; ou seja: social.[24]

A Retórica é a arte de falar bem, visando à instrução e principalmente a persuasão. O fim da Retórica é convencer e, o instrumento de que dispõe é a palavra. Creio que Demócrito (c. 460- c.370 a.C.), estava certo ao afirmar que “para a persuasão a palavra frequentemente é mais forte que o ouro”.[25] Por isso, a arte da persuasão não acompanhada de um senso moral, torna-se extremamente perigosa, visto que podemos com a palavra, usando as técnicas da Retórica, tentar convencer que o branco é preto e vice-versa, conforme o nosso interesse pessoal, agindo do mesmo modo que os sofistas na Antiguidade.

A obra de Demóstenes (c. 460-c. 370 a.C.), Oração à Coroa e em Shakespeare (1564-1616), Júlio César, a oração de Marco Antônio diante do cadáver de César, se constituem em dois bons exemplos literários concernentes ao poder da retórica. A retórica cristã visa levar o ouvinte a fazer a vontade de Deus.

Tucídides (c. 465-395 a.C.), observou em sua monumental obra, História da Guerra do Peloponeso, que:

A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente se torna covardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão.[26]

Sócrates (469-399 a.C.) entendia que o mérito do orador residia em dizer a verdade.[27] Somente nestes termos ele aceitaria ser chamado de orador.[28]

8.2.2. A Relação entre a Retórica e a Homilética

A Homilética se propõe a utilizar alguns dos recursos da Retórica para a transmissão da Palavra de Deus. Desta forma, podemos dizer que a Retórica é o gênero e a Homilética é a espécie.

Se a Retórica visa convencer o homem quanto a qualquer tema; a Homilética, dentro da perspectiva cristã, procura oferecer recursos para que possamos convencer – humanamente falando –, o homem quanto à necessidade de arrependimento e fé em Jesus Cristo. O seu objetivo, portanto, é mais nobre pois, está comprometido com a ordem de Cristo (Mt 28.20; Mc 16.15; At 1.8), a prática apostólica (Cf. At 13.43; 17.4; 19.8; 26.28; 28.23; 2Co 5.11) e a necessidade presente do homem, de encontrar a salvação em Cristo Jesus, em Quem somente há salvação (At 4.12).


[1] ARA não traduz as ocorrências.

[2] Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, IV.3.2. p. 147.

[3]A palavra não aparece no Texto de Nestle-Aland. Ela ocorre em alguns manuscritos menores, sendo empregada no Textus Receptus, podendo ser traduzida por “a companhia em navios” (tw=n ploi/wn o( o(/miloj).

[4]Homero, Ilíada, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 18.603; 24.712.

[5]Menandro, Frag. p. 62, n° 218.

[6]Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, I.2.20.

[7]Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, I.2.6.

[8]Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, I.2.15.

[9]A nossa palavra “sermão”, é a transliteração do latim “sermo”, que significa, “conversação”, “conversa”, “maneira de falar”, etc.

[10] Cf. WM. M. Taylor, et. al. Homiletics: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: Or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk & Wagnalls, Publishers, (revised edition), 1887, v. 2, p. 1011; Homilética: In: Russel N. Champlin; João Marques Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, São Paulo: Editora e Distribuidora Candeia,  1991, v. 2, p. 154. No Dicionário de Antônio Geraldo da Cunha, encontramos a seguinte definição de homilia: “Sermão que tem por objeto explicar assuntos doutrinários” (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2. ed (4. Impressão), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 415).

[11] Cf. WM. M. Taylor, et. al. Homiletics: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: Or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk & Wagnalls, Publishers, 1887, (revised edition), v. 2, p. 1011b.

[12] J. A. Broadus, O Preparo e Entrega de Sermões, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, (Nova edição revista) 1960, p. 10.

[13] Aristóteles, Poética, São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, v. 4), XX 1457a, 10-14, p. 461.

[14] Platão, Górgias, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, S.A., 1989, 452e, p. 58-59.

[15] Platão, Górgias, 457a, p. 67. Lembremo-nos que a Retórica Sofística, inventada por Górgias (c.483-c.375 a.C.), era famosa. Górgias dizia: “A palavra é uma grande dominadora que, com pequeníssimo e sumamente invisível corpo, realiza obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade (…). O discurso, persuadindo a alma, obriga-a, convencida, a ter fé nas palavras e a consentir nos fatos (…). A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer (…). O poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remédios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também entre os discursos alguns afligem e outros deleitam, outros espantam, outros excitam até o ardor os seus ouvintes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas” (Górgias, Elogio de Helena, 8, 14). (Para uma visão bilingue do texto (grego-português), veja-se: https://drive.google.com/file/d/0BztMadtZZ7MGNTQ0MTJmYjItZjFjMi00ODBiLWFlYzYtOTM2MmRiNzZkNjc3/view?hl=en (Consulta feita em 14.08.2020). Sigo, contudo, outra tradução.

“Quanto à sabedoria e ao sábio, eu dou o nome de sábio ao indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau” (Palavras de Protágoras, conforme, Platão, Teeteto, 166d, p. 36). “Mas deixaremos de lado Tísias e Górgias? Esses descobriram que o provável deve ser mais respeitado que o verdadeiro; chegariam até a provar, pela força da palavra, que as cousas miúdas são grandes e que as grandes são pequenas, que o novo é antigo e que o velho é novo” (Platão, Fedro, 267, p. 251). A retórica era uma das marcas características da sofística (Cf. W.K. C. Guthrie, Os Sofistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 167). Veja-se: Claude Vial, Vocabulário da Grécia Antiga, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 328-329.

[16] Platão, Górgias, 453a, p. 59-60; 455a, p. 64.

[17] Veja-se: Armando Plebe, Breve História da Retórica Antiga, São Paulo: EPU; EDUSP., 1978, p. 21ss.

[18] Platão, Górgias, 455a, p. 64.

[19] Veja-se: Platão, Fedro, 278, p. 266-267; Idem, Fédon, 90bss. p. 102-103.

[20] Aristóteles, Arte Retórica, I.2.1. p. 33.

[21] Aristóteles, Arte Retórica, I.1.14. p. 31.

[22] Aristóteles, Arte Retórica, I.1.12. p. 31.

[23]Aristóteles, Arte Retórica, I.1.13. p. 31. Agostinho escreveria mais tarde: “É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é verdadeiro como o que é falso” (Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.2.3. p. 214).

[24]Ver: Retórica: J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Edições Loyola, 2001, v. 4, p. 2524b.

[25]Demócrito, Fragmento 51: In: Victor Civita, ed. Os Pré-Socráticos, São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, v. 1),  p. 330. Demócrito estava muito atento à importância da persuasão; ele observou corretamente que aquele “que é conduzido ao dever pela persuasão, não é provável que, às ocultas ou às claras, cometa uma falta” (Frag., 181, p. 342).

[26]Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, II.82. p. 167.

[27] Platão, Apologia de Sócrates, I. 18a, p. 11.

[28] Platão, Apologia de Sócrates, I.17b, p. 11