Um blog do Ministério Fiel
O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 16)
A pregação no período posterior
Os apóstolos deram enorme ênfase à pregação em seu ministério. Isso fica ainda mais evidente durante o incidente narrado em Atos: As viúvas dos helenistas (judeus de fala e cultura grega provenientes da Dispersão), estavam sendo habitualmente[1] “esquecidas na distribuição diária” (At 6.1).
Ao contrário do que já foi suposto, o “esquecimento”[2] ou uma provisão menor para as viúvas gregas,[3] não foi deliberado. A questão era mesmo de excesso de trabalho juntando a isso, a possível situação de severa penúria das viúvas.[4]
Os apóstolos manifestaram grande discernimento. Havia muito que fazer. A Igreja estava fundamentada e perseverava na doutrina dos apóstolos (At 2.42). O crescimento numérico de convertidos era evidente (At 6.1). Eles precisavam continuar ensinando, alimentando o rebanho. Isto era prioritário na sua vocação apostólica.[5] Não poderiam se desviar de sua tarefa principal, com o risco evidente de falharem em ambas as esferas. Portanto, reconhecendo o problema e ao mesmo tempo não tendo como resolver tudo sozinhos, encaminharam à comunidade, de forma direta, a eleição de “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregariam deste serviço” (At 6.3). Detectando o problema, agiram de forma humilde, rápida e eficaz.[6]
A eleição foi feita. Os apóstolos, então, se dedicaram mais especificamente a outra espécie de diaconia: “à oração e ao ministério (diakoni/a) da Palavra” (At 6.4), ofício para o qual foram especialmente chamados: Pregar a Palavra de Deus buscando sempre em tudo o discernimento em Deus.[7]
A Igreja no Novo Testamento logo enfrentou uma série de perseguições, geradas num primeiro momento, pelos judeus. Para citar apenas algumas, temos a perpetrada contra Estevão, que morreu apedrejado (At 7.1-60); a de Herodes Agripa I, que prendeu a Pedro e decapitou Tiago (At 12.1-3); Paulo, o antigo perseguidor do Evangelho, foi aquele que mais sofreu perseguições (At 9.23-25,29; 14.2-7,19; 16.19-24; 17.4-9, 13-15; 21.30-32).
Essas perseguições, mesmo não sendo desejadas, era esperadas. Jesus Cristo, no primeiro sermão ou série de sermões proferidos às multidões, fala de perseguição e sofrimento. Ele não apresenta um caminho colorido, repleto de falsas esperanças, antes, adverte aos seus ouvintes que se quisessem seguir os seus ensinamentos deveriam estar preparados para ser caluniados, difamados e perseguidos.[8]
Por isso, não seria nenhuma novidade àqueles que tivessem como projeto de vida a fidelidade a Deus: “Pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.10). Mais tarde Estevão faria publicamente esta acusação aos judeus indicando a situação de frequente perseguição imposta aos profetas de Deus: “Qual dos profetas vossos pais não perseguiram (diw/kw)? Eles mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do Justo, do qual vós agora vos tornastes traidores e assassinos” (At 7.52).
Juntamente com os princípios orientadores e identificadores dos cristãos, há promessas e, também, a descrição, ainda que sumária, das consequências da adoção dessa ética do Reino. Os cristãos, com seus valores e ensino, são diferentes e, por isso mesmo, devem saber que lhe esperam perseguições.
Isso é muito relevante. O Cristianismo não nos propõe a ser uma versão melhorada do velho homem, antes, há uma transformação total, um nascer de novo. A fé cristã propõe uma vida em harmonia com a nossa nova natureza. Daí o conflito de essência, consequentemente, de valores, perspectivas e comportamento.
As perseguições, portanto, conforme o ensino de Jesus Cristo, não seriam causadas por alguma idiossincrasia dos fiéis, antes, pelo seu desejo de se assemelhar a Cristo, o alvo final do cristão.
A fome e sede de justiça que deve caracterizar o cidadão do reino é totalmente odiosa e, no mínimo, incômoda ao mundo. É impossível viver coerentemente no mundo sem revelar a nossa verdadeira identidade. Pela graça, somos o que somos: cidadãos do Reino. Somos, em muitos sentidos, estranhos neste mundo, somos estrangeiros residentes. Esta estranheza causada, não deve ser buscada, antes, se manifestará de forma natural conforme assumimos coerentemente os valores do Reino.
Curiosamente, ao aproximar-se o final do seu ministério terreno, às vésperas da sua autoentrega, Jesus se despede de seus discípulos falando do Consolador e, também, das tribulações pelas quais passariam (Jo 13-16). Há aqui uma transição muito importante e significativa: o Senhor após falar de seu sofrimento, considera-o como algo vencido – o que deve servir de estímulo aos discípulos: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
A cruz ‒ ainda incompreensível e inimaginável aos discípulos ‒ símbolo de vergonha, humilhação, dor e aparente derrota, faz parte essencial de sua vitória. Sem a cruz, a encarnação e a ressurreição ficam fora de contexto. Aliás, todo o seu ministério, envolvendo o seu nascimento, ressurreição, ascensão e retorno glorioso, encontra o seu sentido na cruz. Notemos, então, que a cruz não pode ser apenas um enfeite ou ornamento, antes, nos fala do pecado humano, da justiça, da santidade e do amor de Deus.[9]
Sem a cruz de Cristo não há evangelho, nem fé, e, portanto, pregação.
Os discípulos de Cristo não devem se enganar, daí o Senhor longe de lhes alimentar expectativas materiais, diz:
10Bem-aventurados os perseguidos (diw/kw)[10] por causa da justiça (dikaiosu/nh), porque deles é o reino dos céus. 11Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem (o)neidi/zw),[11] e vos perseguirem (diw/kw), e, mentindo (yeu/domai),[12] disserem todo mal (ponhro/j)[13] contra vós. 12 Regozijai-vos (xai/rw)[14] e exultai (a)gallia/w), porque é grande o vosso galardão (misqo/j)[15] nos céus; pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós. (Mt 5.10-12).
Desse modo, feliz é o homem que é perseguido por causa do seu testemunho vivencial e verbal, vivendo conforme os preceitos bíblicos: bem-aventurados são aqueles que enfrentam oposição devido ao seu apego à Palavra em obediência sincera e tenaz a Deus.
Às Igrejas da Dispersão, em iminente perseguição, Pedro escreve:
14 Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados (o)neidi/zw), bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus. 15 Não sofra, porém, nenhum de vós como assassino, ou ladrão, ou malfeitor, ou como quem se intromete em negócios de outrem; 16 mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome. (1Pe 4.14-16).
14 Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça(dikaiosu/nh), bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados; 15 antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós. (1Pe 3.14-15).
A perseguição à igreja era inevitável: Havia um conflito de valores excludentes entre a mensagem do Evangelho e o mundo. Os valores propostos pelo Cristianismo eram insuportáveis para uma sociedade pagã. A fidelidade ao seu Senhor inevitavelmente geraria perseguição. O caminho para uma vida cômoda seria negar o Senhor Jesus. No entanto, para o genuíno discípulo, essa opção jamais poderia ser considerada.
Desse modo, Lucas relata a atitude dos apóstolos ao serem açoitados e proibidos de pregar a Cristo: “Eles se retiraram do Sinédrio regozijando-se (xai/rw) por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse nome” (At 5.41). Da mesma forma Paulo narra os seus sofrimentos: “Entristecidos, mas sempre alegres (xai/rw)” (2Co 6.10).
Pedro orienta e consola as igrejas perseguidas apresentando uma visão escatológica: “Alegrai-vos (xai/rw) na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis (xai/rw) exultando (a)gallia/w)” (1Pe 4.13).[16]
Bonhoeffer (1906-1945), escreve com maestria:
Enquanto Jesus diz: Bem-aventurados, bem-aventurados!, o mundo está a gritar: Fora, fora! Sim, fora!… mas para onde? Para o reino dos céus. ‘Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus.’ Lá estão os pobres no salão festivo. O próprio Deus enxugará dos olhos deles as lágrimas de alegria, e serve aos famintos sua Ceia. Os corpos feridos e martirizados já estão transfigurados, e a veste do pecado e arrependimento foi substituída pela veste branca da eterna justiça. Já neste tempo a Igreja dos perseguidos sob a cruz percebe um chamado que parte daquela alegria eterna, o chamado de Jesus: Bem-aventurados, bem-aventurados.[17]
Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um resumo do que havia sofrido pelo Evangelho de Cristo (2Co 11.23-33). Contudo, havia nele, uma visão constante que transpunha o sentimento de dor e angústia. Na prisão, escreveu aos filipenses: “Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho” (Fp 1.12) e, diz mais: “Alegrai-vos sempre no Senhor, outra vez digo, alegrai-vos” (Fp 4.4). O Evangelho prosseguia em sua caminhada vitoriosa a despeito dos obstáculos erguidos contra ele.
Paulo estava convencido e, demonstrava isto na prática, que Deus nos faz vencer os obstáculos que estão à nossa frente.
A perseguição não se encerrou no primeiro século. A Igreja foi alvo de ataques físicos, morais, intelectuais e espirituais. Todavia, ao lado destas afrontas, ela pode desfrutar da presença confortadora do Espírito Santo. De fato, o Senhor Jesus não nos deixou órfãos; Ele, Ele mesmo está conosco aqui e agora, e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31). Deus levantou também os Pais Apologistas comprometidos com a defesa da fé cristã contra os insistentes ataques aos seus ensinamentos.[18]
Outro aspecto que apenas pontuo, é que não podemos desconsiderar as transformações pelas quais o mundo passou, atingindo o epicentro do Cristianismo com a queda de Jerusalém (70 A.D.), a expansão do Império Romano, as diversas perseguições aos cristãos, a oficialização do Cristianismo por parte de Constantino e, posteriormente, com a sua queda. Grandes transformações cujos efeitos são de alguma forma duradouros, interferem na pregação no sentido de modelo e, especialmente de conteúdo. Foi assim durante as epidemias cíclicas da Peste Negra na Idade Média, durante a Guerra Civil americana, a Segunda Guerra Mundial e, não é diferente hoje nesse período de pandemia e redemocratização cultural em nosso país. Esse não é o meu ponto de análise, porém, como disse, quis apenas pontuá-lo. O fato é que a história nunca pode ser separada dos acontecimentos sociais. Os fenômenos se mostram na história. Os que os percebem e interpretam, também vivem na história. Não há nenhum tipo de vácuo social nos fenômenos nem no historiador que os interpretam.[19]
No período pós-apostólico as homilias consistiam numa simples exposição popular de alguma passagem das Escrituras lida na Congregação. Esta exposição, que tinha um caráter informal – tendo pouco ou nada a ver com a retórica grega –, era acompanhada de reflexões e exortações morais. A descrição de Justino (100-167 AD) feita por volta do ano 150, oferece-nos uma ideia de como era o culto e a pregação naquele período:
No dia que se chama do sol (domingo),[20] celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos (quatro Evangelhos)[21] ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: ‘Amém’. Vem depois a distribuição[22] e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos seus ausentes[23] pelos diáconos.[24]
Com o passar do tempo, a pregação cristã foi se tornando mais elaborada, deixando gradativamente o seu caráter até certo ponto informal. Esta transformação deve-se fundamentalmente aos seguintes motivos:[25]
1) A disseminação do Evangelho entre os gentios: No mundo greco-romano a retórica era a coroa da educação liberal, ganhando forte ênfase no quarto século. Pois bem, se um pregador desejasse ter um ouvido benigno para com a sua mensagem, em um mundo com semelhante ênfase na oratória, seu estilo seria fundamental.
2) A Conversão de homens que já tinham sido treinados na Retórica: A despeito de muitas perseguições, houve um período de intenso trabalho missionário por parte da igreja, contando sempre com a disposição de muitos presbíteros.
Eusébio (c. 260-c. 340) de Cesaréia, pai da História Eclesiástica, sumariou o trabalho missionário de inúmeros anônimos servos de Deus:
Empreendiam viagens longe de casa e faziam a obra de evangelistas, tendo o propósito de pregar a todos quantos ainda não tivessem ouvida a palavra da fé e de lhes dar por escrito os divinos evangelhos. Esses homens se limitaram a meramente deitar os alicerces da fé em alguns lugares estrangeiros e a nomear outros como pastores, aos quais confiavam os cuidados do que acabaram de ser trazidos à fé; em seguida, partiam para outras regiões e a outras pessoas com a graça e a cooperação de Deus….[26]
Destes novos convertidos, muitos se tornaram pregadores, usando naturalmente seus dotes oratórios e sua formação retórica na proclamação do Evangelho. Afinal a cultura greco-romana era a sua cultura,[27] ou seja: estava profundamente radicada no que há de mais íntimo no ser humano;[28] e o cristianismo era uma espécie de contracultura. O paradoxo aqui é que você pode, sem perceber, ensinar princípios e valores contra culturais por meio de princípios de sua cultura.
3) Ênfase na Retórica: Este argumento é decorrente do anterior. Ainda que no primeiro século a separação entre a pregação cristã e a retórica tivesse uma nítida distinção (Veja-se: 1Co 2.4,5), a partir do segundo século as diferenças tornaram-se cada vez mais tênues. Mesmo a retórica não ocupando o mesmo lugar de destaque como, por exemplo, no tempo de Quintiliano (c. 35-100 AD), ela era enfatizada nas Escolas. No início da Idade Média, a retórica teria um novo alento, quando a partir do V século, ela viria constituir-se juntamente com a Gramática e a Lógica, o Trivium – um curso preparatório para o Quadrivium (Aritmética, geometria, astronomia e música). O Trivium e o Quadrivium constituíam as sete Artes Liberais. (“Artes libero dignae”); isto é: História, Retórica, Lógica, Aritmética, Música, Astronomia e Geometria.
No quarto século encontramos Lactâncio (c. 240-c. 320), o “Cícero cristão”, falando da simplicidade do Evangelho em relação à complexidade retórica de filósofos que tem beleza, mas, não a verdade.[29]
Os testemunhos históricos que temos a partir do segundo século, informam-nos que apesar de perseguidos, os cristãos davam o seu testemunho, sendo muitas vezes martirizados – aliás a palavra grega “mártir” significa “testemunha” –, vemos também que o seu comportamento era contagiante por meio de uma conduta diferente, que procurava se pautar pela Palavra de Deus.
Aqui torna-se oportuno transcrever parte de um documento anônimo, escrito ao que parece no final do 2° século, intitulado Carta a Diogneto, que consistia numa explicação do pensamento, conduta e fé cristã, dirigida a um pagão que, impressionado com o testemunho cristão, queria saber mais a respeito desta religião.[30]
Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis; amam a todos e são perseguidos por todos (…). Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.[31]
Apesar de uma história de discriminação, perseguição e martírio, o Cristianismo cresceu. No IV século, o Imperador Constantino (280-337) promulgou o Édito de Milão (313), no qual declarava o fim das perseguições aos cristãos e a restituição de suas propriedades. Em 330, Constantino inaugurou a cidade de Constantinopla transferindo a capital de Roma para a nova cidade.
Numa carta a Eusébio, bispo de Cesaréia, Constantino pedindo com urgência a preparação de 50 Bíblias para a nova capital, revela algo a respeito do crescimento do número de cristãos e de Igrejas:
Com a ajuda da providência de Deus, nosso Salvador, são muitíssimos os que se hão incorporado à santíssima Igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, pois, mui conveniente que, respondendo ao rápido pro-gresso da cidade sob todos os aspectos, se aumente também o número de Igrejas. [33]
4) O Declínio dos pregadores Judeus-Cristãos e Judeus: Temos aqui, a meu ver, mais um efeito dos dois primeiros motivos. A pregação do estilo judeu cedeu lugar a uma pregação mais elaborada, modelada ao senso estético grego e romano.
Dentre os homens que se converteram ao Cristianismo e que deram contribuição à arte da pregação, destacamos: Clemente de Alexandria (c. 150-c.215); Tertuliano (c.150-c. 220); Orígenes (185-254); Lactâncio (c. 240-c.320); Cipriano (200-285); Basílio Magno (c. 330-379); Arnóbio (c. 255-c.330), mestre de Retórica em Sicca, na província Romana da África; Crisóstomo (c. 347-407); Gregório de Nissa (c. 335-394); Ambrósio (340-397); João de Antíoco (347-407) e Agostinho de Hipona (354-430).
Foi Orígenes quem iniciou a caminhada de transição da “homilia” informal, para o sermão mais elaborado. Todavia, quem exerceu maior influência na pregação cristã deste período, foi Agostinho, na sua obra, De Doctrina Christiana (397-427), que tomando Paulo como “modelo de eloquência”,[34] seguiu de perto a Aristóteles e Cícero. Estabeleceu uma relação entre os princípios da teoria retórica com a tarefa da pregação, fazendo as adaptações necessárias.[35] Insistiu – seguindo a Cícero –, que a pregação tem três propósitos: Instruir (docere); Agradar (delectare) e Persuadir (flectere), enfatizando este último.[36]
Agostinho também deu ênfase à necessidade de haver um acordo entre a vida e as palavras do pregador, bem como a necessidade de oração como uma preparação para o sermão:
Quem quiser conhecer e ensinar deve, na verdade, primeiramente aprender tudo o que é preciso ensinar, e adquirir o talento da palavra como convém a um homem da Igreja. Mas no momento mesmo de falar, que pense nestas palavras do Senhor, que se aplicam particularmente o coração bem disposto: Quando vos entregarem não fiqueis preocupados em saber como ou o que haveis de falar, porque não sereis vós que estareis falando naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós.[37]
[1]O verbo paraqewre/w no imperfeito, sugere a ideia de algo frequente e habitual. Este verbo só ocorre aqui (At 6.1) no Novo Testamento.
[2] Assim pensa Barclay. (William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 7, p. 60).
[3] Calvino aventa sobre essa possibilidade (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.1), p. 231).
[4] Vejam-se: I.H. Marshall, Atos: Introdução e Comentário, São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1982, p. 123; John R.W. Stott, A Mensagem de Atos, São Paulo: ABU Editora, 1994, p. 133; Simon Kistemaker, Comentário do Novo Testamento: Atos, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, p. 295.
[5]“Portanto, quando os apóstolos põem a pregação do evangelho em primeiro plano, disso inferimos que nenhuma obediência é mais agradável a Deus do que esta. Não obstante, ao mesmo tempo realça-se a dificuldade, quando dizem que não estão aptos para exercerem aqueles dois ofícios. Por certo que de modo algum somos superiores a eles” (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 234).
[6] “É uma marca de prudência e piedade preocupar-se em cercear rapidamente o mal no nascedouro, e não protelar a descoberta de um remédio para o mesmo. Pois depois que toda dissensão e rivalidade tiverem recobrado força, se convertem numa ferida que é difícil de se curar”, interpreta Calvino (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 231-232).
[7] Stott lamentando a falta de seriedade moderna para com a Palavra, diz que se adotássemos esta mesma agenda apostólica, “…. envolveria para a maioria de nós, uma reestruturação radical do nosso programa e do cronograma, inclusive uma delegação considerável de outras responsabilidades aos líderes leigos, mas expressaria uma convicção verdadeiramente neotestamentária a respeito da natureza essencial do pastorado” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 132).
[8] Barclay destaca esta característica do Senhor denominando-a de “absoluta honradez” (William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.10-12), p. 120).
[9]Veja-se: David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 222.
[10]O substantivo “perseguição” (Diwgmo/j = “caça”, “pôr em fuga”) dá a entender a figura simbólica de um animal caçado, de uma presa perseguida, de um tormento incansável e sem misericórdia. Esta palavra denota mais especificamente as perseguições promovidas pelos inimigos do Evangelho; ela se refere sempre à perseguição por motivos religiosos (Ver: Mc 4.17; At 8.1; 13.50; Rm 8.35; 2Tm 3.11). O verbo Diw/kw é utilizado sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a palavra empregada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que antes perseguia a igreja (Fp 3.6) mas, agora, prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz (1Pe 3.11).
[11] O sentido da palavra é de repreender, insultar, censurar. A palavra não indica uma atitude má em si, a questão está em seu motivo.
[12] O sentido da palavra é o de enganar com mentiras.
[13] Os cristãos primitivos, por exemplo, foram acusados de canibalismo devido às palavras da Ceia (“comei e bebei”); orgias (Devido à “festa do amor”, “agápe”, quando os cristãos se saudavam com ósculo santo); incendiários (devido à pregação escatológica); dissolução familiar (divisão na família quando nem todos se convertiam ao cristianismo) e rebeldia (não participavam do culto ao imperador, instrumento político de manutenção da unidade do império). (Veja-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.10-12), p. 123-125). Todas estas acusações foram fermentando, criando, gradativamente uma atmosfera de indisposição, de senso comum avesso aos cristãos. (Veja-se: Jaroslav Pelikan, A Tradição Cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradição católica 100-600, volume 1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 48ss.).
[14] O verbo está no imperfeito, xai/rete, indicando uma ação incompleta visto que ainda está em processo de realização com vistas ao seu objetivo final. Neste caso, a alegria recomendada deve ser contínua.
[15] A palavra galardão que tem também o significado de recompensa (Mt 5.46; 6.2,5,16; Jo 4.36); salário (Mt 20.8; Lc 10.7; Rm 4.4; 1Tm 5.18; Tg 5.4); preço (At 1.18); prêmio (2Pe 3.15) e, até mesmo, ganância (Jd 11), enfatiza não as nossas obras, antes, a misericórdia de Deus que se lhe antecipa. Nesta bem-aventurança somos confrontados com os valores celestiais os quais devem iluminar e dirigir nossos valores: “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.10). Daí a instrução de Paulo aos colossenses: “Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. 2 Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; 3 porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. 4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.1-4).
[16] Do mesmo modo, Paulo escrevera aos tessalonicenses quando enfrentavam perseguição: “Regozijai-vos (xai/rete) sempre” (1Ts 5.16/Fp 3.1; 4.4).
[17] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 63.
[18] Veja-se: Jaroslav Pelikan, A Tradição Cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradição católica 100-600, volume 1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 33-85.
[19] Para a minha perspectiva de história, veja-se: file:///C:/Users/hermi/Downloads/10286-Texto%20do%20artigo-41816-1-10-20170403.pdf (Consulta feita em 12.09.2020).
[20] Cf. Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 67.7. Essa prática tornou-se comum no Novo Testamento, perpetuou-se na Igreja Cristã e, já no segundo século encontramos farto material atestando o culto dominical. (Vejam-se: Didaquê, XIV.1; The Epistle of Barnabas, XV. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds., Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 147. Cartas de Santo Inácio de Antioquia, Petrópolis, RJ.: Vozes, ã 1970, Carta aos Magnésios, 9, p. 53).
[21]Esta expressão de Justino refere-se aos Evangelhos, conforme ele mesmo diz: “Foi isso o que os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos….” (Justino de Roma, I Apologia, 66.3).
[22] A distribuição dos elementos da Ceia não era feita indistintamente, mas somente aos crentes, conforme ele mesmo explica: “Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo ensinou” (Justino de Roma, I Apologia, 66.1). Critério semelhante, temos no Didaquê, IX.5: “Mas ninguém coma nem beba de vossa Ação de Graças, a não ser os que foram batizados no nome do Senhor. Pois que, a respeito disto, também disse o Senhor: ‘Não deis aos cães o que é santo’.”.
[23] Calvino, mesmo sem aludir a esta passagem, demonstra ter restrições a essa prática. (Veja-se: J. Calvino, As Institutas, IV.17.39).
[24] Justino de Roma, I Apologia, 67.
[25] Vejam-se: John A. Broadus, O Preparo e Entrega de Sermões, p. 9-10; Ralph G. Turnbull, Baker’s Dictionary of Practical Theology, 7. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1980, p. 51-52; Edwin C. Dargan, A History of Preaching, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1954, v. 1, p. 29ss. John Stott, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 15-21. Em especial, para um estudo mais completo, consulte a magnífica obra de Old (1933-2016): Hugh O. Old, The Reading and Preaching of the Scriptures in the Worship of the Christian Church: Vol. 2 – The Patristic Age, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1998.
[26]Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos, 349), 1973, v. 1, III.37.2-3.
[27]“A cultura organiza-se segundo as relações intrínsecas sobre o conhecimento do mundo, a vida e as experiências do espírito e as ordens práticas em que se realizam os ideais da nossa conduta. Nisto se expressa o complexo estrutural psíquico, o qual precisamente determina também a concepção filosófica do mundo” (Wilhelm Dilthey, A Essência da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1984), p. 138).
[28]Ver: Johannes Hessen, Filosofia dos Valores, 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1980, p. 246.
[29] Veja-se, por exemplo: Lactantius, The Divine Institutes, III. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, Peabody, Massachusetts: Hendrickson publishers, © 1994, v. 7, p. 69ss.
[30] Veja-se: Carta a Diogneto, I: In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 19. O autor não se identifica-se. Especula-se que tenha sido Panteno de Alexandria, Quadrado de Atenas e Hipólito, entre outros. Diogneto, seria o preceptor do Imperador Marco Aurélio ou Cláudio Diógenes, que era Procurador de Alexandria entre o final do segundo século e início do terceiro. (Vejam-se: J. Quasten, Patrología, Madrid: La Editorial Catolica (Biblioteca de Autores Cristianos, 206), 1968, v. 1, p. 245-249 e J.B. Lightfoot, Los Padres Apostolicos, Barcelona: CLIE, (s.d.), p. 597-600.
[31] Carta a Diogneto, V.1-11,17: In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 22-23.
[32] Quanto a um estudo estimativo do crescimento do Cristianismo nos primeiros séculos, amparado em boas fontes, veja-se: Rodney Stark, O crescimento do cristianismo: um sociólogo considera a história, São Paulo: Paulus, 2006, p. 13-37.
[33] Eusebius, The Life of Constantine, IV.36: In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (reprinted), (Second Series), 1978, v. 1, p. 549.
[34]Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, IV.7.15. p. 228.
[35] Veja-se por exemplo, Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.19.35. p. 248-249; IV.19.37. p. 250-251
[36]Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.12.27ss. p. 239ss.
[37]Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.16.32. p. 245.