O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 21)

A Criação como revelação de Deus

Kuyper (1837-1920) nos chama a atenção para um ponto que costumeiramente é esquecido:

Quando Deus criou Adão, Ele nos criou: na natureza de Adão ele fez surgir a natureza onde nós agora vivemos. Os capítulos de Gênesis 1 e 2 não são registros de alienígenas, mas o nosso próprio registro – referente à carne e sangue que carregamos conosco, à natureza humana em que nos sentamos para ler a Palavra de Deus.[1]

Assim sendo, tratar da criação do homem significa falar de nós mesmos, de nossa origem, da nossa história por meio de nossos primeiros pais. É impossível fazer isso de forma indiferente. À frente, Kuyper continua: “Quando Deus formou Adão, do pó, ele também nos formou. (…) A queda de Adão foi também a nossa. Numa palavra, a primeira página de Gênesis relata a nossa própria história real, e não a de um estranho”.[2]

A doutrina da Criação e da Queda é fundamental à teologia e fé cristãs. Daí, em especial, o caráter decisivo da historicidade dos três primeiros capítulos de Gênesis. Deus age no tempo que Ele mesmo cria e preserva. Ele é senhor do tempo. Deus cria o homem e a mulher e por meio deles, toda a humanidade. O pecado, resultado da desobediência, ocorreu na história. Por isso, todo o desenvolvimento da história em consonância com a promessa de Deus da vinda daquele que esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3.15).[3] A encarnação ocorreu na história, assim como a morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Desprezar a doutrina da Criação significa uma falta de compreensão bíblica do propósito de Deus que faz todas as coisas conforme a sua determinação e graça. Sem a Criação não teria sentido a encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o eterno Filho de Deus.

Davi contemplando a majestosa criação de Deus, escreveu: “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente (arey”) (yare’) maravilhoso (hl’P’) (palah) me formaste; as suas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (Sl 139.14).[4]

A doutrina da Criação nos fala do poder todo suficiente de Deus e de nossa total dependência daquele que nos criou e preserva. Somente Deus, pelo seu poder, pode do nada tudo criar.[5]

Deus, como causa primeira de todo o conhecimento, proporciona ao homem por meio da sua criação, a natureza, a oportunidade e responsabilidade de conhecer a realidade do mundo físico. Porém, é bom que se diga que este conhecimento não é completo, nem absolutamente claro, visto que o pecado pôs seu selo sobre a Criação, obscurecendo o entendimento do homem e, a própria Natureza perdeu parte da sua eloquência primeva.[6]

Meeter (1886-1963), escreveu com beleza:

Contudo, ainda hoje a natureza, é um espelho no qual se refletem as glórias de Deus. Sem embargo, por causa do pecado, pode-se dizer que este espelho está deformado. Como é bem sabido, um espelho côncavo reflete as coisas de uma forma grotesca e distinta de como realmente são.[7]

A História, a Natureza e o homem, como parte desta, refletem algo do seu Criador. “O homem, por haver sido criado à imagem de Deus, nos revela muito sobre o ser do Criador”[8] (Sl 139.14). Por isso, os homens são indesculpáveis (Rm 1.19,20).[9].[10]

Deus expressa o seu pensamento e a sua vontade no mundo, na criação, envolvendo o homem com a manifestação visível da sua glória, a qual é proclamada, apesar do pecado, de forma fecunda nas obras da Criação (Sl 19.1; At 14.17; Rm 1.19,20).

Calvino (1509-1564) acentua que,

A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem que algum criador existe (…). Certamente que a religião nem sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo[11].

Deus, o mundo e o homem são as três realidades com as quais toda a ciência e toda filosofia se ocupam.[12] Pois bem, se Deus não tivesse primeiramente, de forma livre e soberana se revelado (Sl 115.3; Rm 11.33-36) – concedendo ao homem o universo como meio externo de conhecimento, onde funciona com as suas leis próprias e regulares – toda e qualquer ciência seria impossível.

Poythress que caminha na mesma direção:

O trabalho da ciência depende do fato de existirem regularidades no mundo. Sem elas não haveria nada no final para ser estudado. Os cientistas dependem não só das regularidades com que já estão acostumados, como do comportamento regular dos aparelhos de medição, mas também dependem do postulado da ocorrência de outras regularidades a serem descobertas nas respectivas áreas de pesquisa. Os cientistas precisam manter a esperança de encontrar regularidades adicionais, ou desistiriam das explorações mais recentes.[13]

O mundo, inclusive o homem, é o grande laboratório de todas as ciências. Quem, no entanto, “construiu” este laboratório foi Deus, vocacionando o homem ao privilégio e responsabilidade de estudá-lo,  e descobrir  os “enigmas” que estão por trás das leis que funcionam de acordo com as prescrições do Seu Criador. Não pensemos, contudo, que Deus criou o mundo apenas para satisfazer a curiosidade humana. Deus o fez como testemunho da sua glória: “A grande finalidade da criação foi a manifestação da glória de Deus”, infere Pink (1886-1952).[14]

Deus ainda hoje não deixou de dar testemunho da sua existência e bondoso cuidado para com o homem (At 14.17).[15] Deus está ativo, preservando a sua criação[16] para o fim proposto por ele mesmo. “Deus não é mero espectador do universo que ele criou. Ele está presente e ativo em todas as partes, como o fundamento que sustenta tudo e o poder que governa tudo o que existe”, comenta Boettner (1901-1990).[17] A Bíblia atesta este fato amplamente. (Vejam-se: Ne 9.6; At 17.28; Ef 4.6; Cl 1.17; Hb 1.3).[18] Deus faz todas as coisas “conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11/Sl 115.3).

O homem natural pode não saber disso,[19] pode não aceitar[20] e até combater tal “absurdo”;[21] entretanto, o que o homem pode fazer contra a verdade? (2Co 13.8). O que são os argumentos que tentam negar a existência de Deus, senão fruto de uma falsa interpretação da revelação Geral de Deus?!

Calvino (1509-1564), discorrendo sobre a revelação de Deus na Natureza, diz:

Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas, porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância. (…) O mundo foi fundado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina.[22]

Este mundo é semelhante a um teatro onde Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória.[23]

Ele entende que “o princípio da religião” que é implantado nos homens é uma das evidências da sua “preeminente e celestial sabedoria”.[24]

Em outro lugar, observando que “no coração de todos jaz gravado o senso da divindade”,[25] argumenta que a tentativa humana de negar a Deus nada mais é do que uma revelação do “senso de divindade que, tão ardentemente, desejariam extinto”.[26] Conclui que é impossível haver verdadeiro ateísmo.[27]

Sem a ação primeira de Deus, não haveria ciência. Graças a Deus porque ele registrou de forma mui santa e sábia as suas leis (físicas, químicas, termodinâmicas, etc.) “no grande livro do mundo”.[28] É preciso, contudo, que não nos detenhamos apenas aí, para que não fiquemos com a menor parte, pois, o que disse Blaise Pascal (1623-1662), apesar do exagero de ênfase, tem o seu lugar: “O Deus dos cristãos não consiste num Deus simplesmente autor de verdades geométricas e da ordem dos elementos; essa é a porção dos pagãos e dos epicuristas”.[29]

Dentro de tudo o que foi colocado, surge de forma natural a pergunta: E o homem, pode entender esta revelação? Pode o homem, como intérprete que é, reconhecer a mensagem unívoca do grande “locutor”,[30] que é Deus?… Creio que a Ciência nos seus avanços e retrocessos – diferentemente da concepção de Comte (1798-1857) a respeito da ciência[31] – com conexões aqui e ali,[32] tem respondido a estas questões.


[1] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 70.

[2]Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 71.

[3] “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).

[4] “Ao único que opera grandes (lAdG”) (gadol) maravilhas (al’P’) (pala), porque a sua misericórdia dura para sempre” (Sl 136.4).

[5] “A doutrina da criação a partir do nada ensina a absoluta soberania de Deus e a absoluta dependência humana. Se uma partícula não tivesse sido criada do nada, Deus não seria Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 427).

[6] Veja-se: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 72.

[7] H.H. Meeter, La Iglesia y Estado, p. 28.

[8]H.H. Meeter, La Iglesia y Estado, p. 26. Calvino (1509-1564) comentou: “Por esta causa, alguns dos filósofos antigos chamaram, não sem razão, ao homem, microcosmos, que quer dizer mundo em miniatura; porque ele é uma rara e admirável amostra do grande poder, bondade e sabedoria de Deus, e contém em si milagres suficientes para ocupar nosso entendimento se não desdenharmos considerá-los” (J. Calvino, As Institutas, I.5.3). Comentando Gênesis 5.1, Calvino diz que Moisés repetiu o que ele havia dito antes, porque “a excelência e dignidade deste favor não podiam ser suficientemente celebradas. Já era uma grande coisa que se desse ao homem um lugar primordial entre as criaturas; mas é uma nobreza muito mais exaltada que ele portasse semelhança com seu Criador, como um filho com seu pai” (John Calvin, Commentaries on the First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1, p. 227. (Veja-se também:  J. Calvino, As Institutas, II.1.1).

[9] “Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.19-20).

[10] Veja-se: J. Calvino, As Institutas, I.5.2 e 4.; J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.19-20), p. 64-66; Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 160.

[11]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299.

[12]Herman Bavinck, The Philosophy of Revelation, New York: Longmans, Green, and Company, 1909, p. 83.

[13] Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 22. Veja-se também: Eric C Bust, Ciência e Ética: In:  Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 106-108.

[14] A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 84.

[15] “A finalidade de conhecer a Deus através de sua criação é inerente à vocação do homem na terra”. (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 64).

[16]Para o conceito de “preservação”, veja-se: entre outros, A.H. Strong, Systematic Theology, p. 419; Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co. 1986, v. 1, p. 575.

[17]L. Boettner, La Predestinación, Grand Rapids, Michigan: TELL. (s.d.), p. 33. O Deus em Quem cremos é totalmente oposto àquele pintado nos versos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), em sua Romaria, que termina assim: “Os romeiros pedem com os olhos,/ pedem com a boca, pedem com as mãos./ Jesus já cansado de tanto pedido/ dorme sonhando com outra humanidade” (Carlos D. de Andrade, Antologia Poética, 18. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1983, p. 36).

[18]Veja-se: Confissão de Westminster, Cap. V.

[19]Contudo, nem por isso se torna “desculpável” pois, a Revelação de Deus na criação tornou a todos os homens, sem exceção, indesculpáveis (Rm 1.20).

[20]Atitude típica de J. P. Sartre. Veja-se: J.P. Sartre, O Existencialismo é um Humanismo, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 45), p. 15, 28, passim. Veja-se: também a análise de M. Green, Mundo em Fuga, São Paulo: Vida Nova, (s.d.), p. 36-67.

[21] F. Nietzsche (1844-1900) combateu de forma encarniçada a ideia de Deus e todo e qualquer teísmo (Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Deus em Nietzsche, São Paulo: 1996, passim).

[22] João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.3), p. 300-301.  Vejam-se também: (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.1), p. 356). João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 62.

[23]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.21), p. 63.

[24]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 167.

[25]João Calvino, As Institutas, I.3.1.

[26]João Calvino, As Institutas,I.3.3.

[27]“O argumento bíblico a ser mencionado aqui é que ninguém é realmente ateu, no sentido mais sério desse termo. Quando as pessoas se afastam da adoração ao Deus verdadeiro, elas não rejeitam o absoluto em geral. Antes, em vez do verdadeiro Deus, eles adoram ídolos, como Paulo ensina em Romanos 1.18–32. A grande divisão na humanidade não é que alguns adorem um deus e outros não. Pelo contrário, é entre aqueles que adoram o Deus verdadeiro e aqueles que adoram falsos deuses, ídolos. A adoração falsa pode não envolver ritos ou cerimônias, mas sempre envolve o reconhecimento da asseidade, honrando alguns que não dependem de mais nada” (John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, Phillipsburg, New Jersey: P&R Publishing, 2015, p. 7).

[28] Expressão de Descartes (1596-1650), (Veja-se: R. Descartes, Discurso do Método, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 16), I, p. 41).

[29] B. Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 16), VIII. 556, p. 178.

[30] P. Ricouer, Interpretação e Ideologias, 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 19.

[31]Augusto Comte (1798-1857), considerado o Pai da Sociologia e do Positivismo, acreditava ter descoberto uma lei fundamental que regia a inteligência humana bem como toda a história. Ele assim descreve:

“Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes dum exame atento do passado” (Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, São Paulo: Abril Cultura, (Os Pensadores, v. 33), 1973, I.11. p. 9-10).

Em seguida, Comte expõe a lei descoberta:

“Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo” (Augusto Comte, Curso de Filosofia Positivista, I.11. p. 10). Para maiores detalhes sobre o Positivismo e a sua pretensão científica, ver: Hermisten M.P. Costa, A Construção do Pensamento Moderno e a Pregação Bíblica: – Compreensão e Desafios –, São Paulo, 2005, 227p.

[32] Cf. H. Bavinck, The Philosophy of Revelation, New York: Longmans, Green, and Company, 1909, p. 84.