O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 22)

O Deus que se revela fidedigna e adequadamente

Graça e conhecimento

Na medida em que as ciências se aproximam do centro e deixam de ser meramente formais, a subjetividade e a personalidade do investigador desempenham um papel maior. É totalmente fútil silenciar a subjetividade, negar à fé, às convicções morais e religiosas, à metafísica e à filosofia sua influência sobre o estudo científico. Quem tenta fazer isso nunca terá sucesso, porque o estudioso nunca pode ser separado do ser humano. Portanto, é muito melhor perceber que o investigador científico pode ser, tanto quanto possível, um ser humano normal, de tal maneira que ele não traga falsas pressuposições para sua obra, mas seja um homem de Deus plenamente equipado para toda boa obra. Para esse fim o conhecimento que Deus revelou de si mesmo em sua palavra é útil: ele não esconde, mas favorece o estudo e a pesquisa científica. Seja qual for o mau uso que tenha sido feito ou que possa ser feito disso, a declaração continua sendo verdadeira: “A piedade para tudo é proveitosa (1Tm 4.8). – Herman Bavinck.[1]

Clark (1902-1985), faz uma afirmação tão óbvia como aquela do comentarista “craque” desportivo, após o goleador dentro da área adversária, resolver chutar a bola e não passar para o seu companheiro, e ter perdido o gol: “Era preciso ter tocado a bola”, “o egoísmo atrapalha”, “é preciso pensar no time”, “a competição pela artilharia pode levar o time ao fracasso”… Esses poderiam ser alguns dos comentários feitos depois de malsucedido chute. Creio que concordaria com isso. Após o fato consumado, as afirmações categóricas são mais fáceis.

É nesse sentido que a declaração de Clark se insere. Apenas, com um detalhe: é feita antes do chute. Depois, ficou tudo fácil.

Todo sistema deve começar em algum ponto e não pode ter iniciado antes de começar. (…) A inferência é: ninguém pode contestar de forma coerente o fato de o cristianismo basear-se em axiomas não demonstráveis. Se os secularistas se valem do privilégio de basear seus teoremas em axiomas, os cristãos também podem fazer o mesmo. Se eles se recusam a aceitar nossos axiomas, então não podem opor  nenhuma objeção lógica para não rejeitarmos os deles. Consequentemente, rejeitamos as próprias bases do ateísmo, do positivismo lógico e do empirismo de forma geral. Nosso axioma é o de que Deus falou. Ou, de modo mais completo – Deus falou na Bíblia. De forma mais precisa, as afirmações bíblicas são o que Deus falou.[2]

As nossas pressuposições nos acompanham sempre ainda que nem sempre de modo consciente. Elas são construções que consideramos bem fundamentadas que nos ajudam a ver e a interpretar melhor a realidade. “Não há algo que possa ser chamado de método epistemológico neutro. Sempre pressupomos certa visão de realidade antes de perguntar como investigá-la”, resume Horton.[3]

Seria fascinante se pudéssemos perceber criticamente sem depender de pressuposições, no entanto, isso pode ser a pressuposição mais perigosa de todas: de que conhecemos a realidade em sua complexidade de forma imediata, sem mediações e pressuposições. Todo o nosso conhecimento é mediato, feito através de interpretações.

Portanto, aquela seria uma pressuposição indemonstrável. Percebam a tolice desse pensamento: pressupor que posso conhecer sem pressupor.

Nash (1906-2006) de forma serena faz um comentário pertinente:

Óculos corretos são capazes de pôr o mundo em foco mais claro – e a cosmovisão correta pode funcionar de um modo muito parecido. Quando alguém olha o mundo pela perspectiva da cosmovisão errada, o mundo não faz sentido. Ou o que a pessoa pensa fazer sentido estará, na verdade, errado em aspectos importantes. Aplicar o esquema conceitual correto, isto é, ver o mundo através da cosmovisão correta, pode ter repercussões importantes para o resto da compreensão da pessoa de acontecimentos e ideias.[4]

A validade de nossa cosmovisão deve ser considerada a partir de sua capacidade de iluminar a realidade oferecendo-nos uma perspectiva abrangente e significativamente coerente.[5] No entanto, as nossas pressuposições devem sempre ser avaliadas à luz das Escrituras, afinal, como escreveu Calvino, “A mente humana é passível de vaidade. Entretanto, quando o diabo acende o fogo, vemos eruditos e ignorantes arrebatados por ele”.[6]

Apenas destaco mais um aspecto para não me deter em demasia nesse ponto. O homem é um ser integral envolvendo o intelecto e o seu coração. A leitura da realidade não pode, porque na realidade é impossível, fraccionar subjetivamente o indivíduo, assim como é impossível separar objetivamente a realidade que envolve Deus e o mundo criado e sustentado por Ele, como bem escreveu Bavinck (1854-1921):

O homem que se dedica à ciência não pode se dividir em duas metades, separando sua fé de seu conhecimento; mesmo em suas investigações científicas, ele continua sendo um homem – não um ser puramente intelectual, mas uma pessoa com um coração, com afeições e emoções, com sentimento e vontade.[7]

Como temos visto, alguns dos pressupostos fundamentais da fé cristã, de sua ontologia e epistemologia, é a convicção de que Deus existe, é um ser pessoal (não apenas uma causa não-causada, ou movente imóvel), que tem autoconsciência, se revela de forma verdadeira e acessível, – se relacionando pessoalmente com Adão e Eva. Temos nas Escrituras o registro dessa verdadeira revelação à qual o próprio Espírito de Deus nos guia em sua compreensão, nos conduzindo a um relacionamento pessoal com o Deus Triúno.[8]

Não conhecemos a essência de Deus em sua completude, porém, podemos conhecê-la à medida que Ele se revela, visto que a sua revelação “desvela” facetas de sua natureza eterna, tais como, bondade, justiça, santidade, graça, amor, etc.[9]

As Escrituras não são especulativas

As Escrituras não se perdem em especulações. Isso por dois motivos óbvios: Deus como senhor de todo o conhecimento e verdade, de nada carece saber. Todo o saber lhe pertence; nada lhe é derivado.[10] O segundo motivo é que Ele não deseja que o seu povo se perca em especulações de assuntos não revelados, que são de sua exclusiva autoridade.

Guiar-se por especulações significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer. “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer (1926-2020).[11]

A Bíblia é um livro descritivo e extremamente prático. Ela não discute, por exemplo, sobre a existência de Deus ou faz abstrações de sua natureza e essência, antes, parte do pressuposto da existência do Deus Todo-Poderoso que se revela criando com sabedoria e poder todas as coisas. Portanto, mais do que uma teoria ou abstração, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[12] É o Deus que se relaciona e cuida de seu povo.

A história do povo de Israel é de certa forma a história da revelação concreta de Deus na História: no tempo e no espaço, conduzindo o seu povo. “A Escritura, em sua totalidade, é o próprio livro da providência de Deus”, resume Bavinck (1854-1921).[13]

Schaeffer (1912-1984), argumentando em prol da genuinidade da revelação de Deus em forma de proposição e história, escreve:

Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na História, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido a sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria qualquer sentido!”

Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo.[14]

Deus é o Senhor eterno antes e independentemente de sua Criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés (Sl 90.2).

Deus infinito-pessoal que se revela

As Escrituras nunca tratam de Deus de forma impessoal ou abstrata, mas, como o Deus infinito-pessoal que se revela[15] e se relaciona misericordiosamente com os seus.

As Escrituras evidenciam o valor metafísico da realidade, contudo, não se limitam a isso, por mais importante que seja e, de fato é. Elas tratam dessa questão em termos ontológicos, normativos e existenciais. A metafísica está relacionada diretamente com a Lei absoluta de Deus e com os efeitos disso em nossa vida. Isso explica, por exemplo, porque grande parte das Escrituras consiste em narrativa histórica, onde esses aspectos são realçados na vida do povo de Deus em sua obediência ou não, no lócus temporal, ao Deus soberano.

Obviamente, o Deus das Escrituras não é um deus criado pela imaginação do homem projetando em sua criação seus desejos e vícios,[16] o que facilmente conduziria da idolatria ao ateísmo.[17] Aliás, o ateísmo não deixa de ser uma forma de idolatria, visto que o homem passa a adorar a criatura, no caso, a sua suposta poderosa mente, em lugar do Criador (Rm 1.25).

Frame comenta:

O argumento bíblico a ser mencionado aqui é que ninguém é realmente ateu, no sentido mais sério desse termo. Quando as pessoas se afastam da adoração ao Deus verdadeiro, elas não rejeitam o absoluto em geral. Antes, em vez do verdadeiro Deus, eles adoram ídolos, como Paulo ensina em Romanos 1:18–32. A grande divisão na humanidade não é que alguns adorem um deus e outros não. Pelo contrário, é entre aqueles que adoram o Deus verdadeiro e aqueles que adoram falsos deuses, ídolos. A adoração falsa pode não envolver ritos ou cerimônias, mas sempre envolve o reconhecimento da asseidade, honrando alguns que não dependem de mais nada.[18]

Deus não se deixa invadir pela razão humana, ou mesmo pela fé. Ele se dá a conhecer livre, fidedigna e explicitamente. Deus se revela a si mesmo como Senhor.[19] E “Senhorio significa liberdade”, pontua Barth (1886-1968).[20]

Conhecer a Deus é um privilégio da graça que tem o seu início sempre no Deus Trino (Mt 11.27;1Co 12.3). Deus sabe tudo a nosso respeito, nos conhece mais do que nós mesmos. Nada que lhe digamos é inusitado. Nós, só o conhecemos à medida em que se revela, fala de si mesmo (Sl 139.1-4; 33.13-15; Jo 1.47-48; 2.25).

“Quanto mais conhecemos Deus, mais compreendemos, e sentimos que seu mistério é inescrutável”, comenta Brunner (1889-1966).[21] A douta ignorância faz parte essencial da fé genuína e sincera.[22] O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação.

Sem revelação nada sei a respeito de Deus. Com a graça objetiva da revelação e o guiar interior do Espírito, é que passo a saber e a descobrir que não sei. É no conhecimento intensivo e experimental de Deus que vamos ampliando reverentemente o nosso conhecimento e descobrindo o quanto ignoramos.

Sem o desvelar-se de Deus não há teísmo, ateísmo nem agnosticismo. É no encontro significativamente pessoal com Deus que tomamos conhecimento de nossas limitações.[23] Por isso, é que todo agnosticismo é uma forma de suicídio intelectual.[24] E, no campo teológico, o agnosticismo não difere essencialmente do ateísmo.[25]

Deste modo, o homem passaria toda a sua vida e estaria na eternidade sem o menor conhecimento de Deus por mais engenhosos que fossem os seus métodos, por mais sistemáticas que fossem as suas pesquisas, por mais que evoluísse a ciência… O homem nunca conseguiria chegar a Deus, ou mesmo à sua ideia: ignoraria eternamente a própria ignorância! Entretanto, Deus continuaria sendo o que sempre foi: o Senhor![26] Todavia, graças a Deus, porque Ele soberanamente se revelou a si mesmo, para que possamos conhecê-lo e render-lhe toda a glória que somente a Ele é devida. Em Cristo, nós somos confrontados com o clímax e plenitude da revelação de Deus (Jo 14.9-11; 10.30; Cl 1.19; 2.9; Hb 1.1-4). “Tudo quanto diz respeito ao genuíno conhecimento de Deus constitui um dom do Espírito Santo”, declara Calvino.[27]

Lewis (1898-1963) escreve de forma perspicaz:

O ateísmo (…) é uma coisa por demais simplista. Se todo o universo não tem sentido, nunca descobriríamos que ele não tem sentido, do mesmo modo que, se não houvesse luz no universo, nem, consequentemente, criaturas com olhos, nunca saberíamos que era escuro. A palavra escuro seria uma palavra sem sentido.[28]

No entanto, Deus se revelou fidedigna e acessivelmente. “No Filho temos a revelação última de Deus. Da mesma forma como é verdade que quem viu o Filho viu o Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não viu o Pai”, escreve Hendriksen (1900-1982).[29] Jesus Cristo, a plenitude da graça encarnada, é a medida da revelação; o seu padrão e apelo final!

Bavinck (1854-1921) exulta:

A plenitude do ser de Deus é revelada nele. Ele não apenas nos apresenta o Pai e nos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelado a Si mesmo e Deus compartilhado a Si mesmo, e, portanto, Ele é cheio de verdade e também cheio de Graça.[30]

Deus também não é uma mera força impessoal sem nenhum sentido de racionalidade, antes, é o Deus transcendente e pessoal que se revela genuinamente, com quem podemos nos relacionar: ouvir, amar, temer, confiar e orar.[31]

A linguagem usada para Deus tem um caráter relacional, mostrando um Deus que se relaciona com o seu povo na história.[32] Aliás, é a partir do relacionamento de Deus com a Criação em geral e com o homem em especial, que torna possível a teologia. A revelação é a passagem do Deus consigo para o Deus conosco. Do Deus absconditus  para o  Deus  revelatus. Aspectos do caráter de Deus se revelam em suas relações com suas criaturas.[33]

O nosso conhecimento pode ser real e genuíno, porém é fragmentado e limitado.[34] Contudo, devemos nos alegrar em poder conhecer. O Senhor não exigirá mais do que nos foi dado. Mas, o Senhor exige a nossa fidelidade no muito e no pouco.[35]

A despeito de nossas limitações, da loucura de nossa tentativa de pensar autonomamente, Deus, o Senhor glorioso e majestoso, torna-se conhecido por nós, paradoxalmente não pelos nossos esforços, mas, porque Ele graciosamente se dá a conhecer de forma acessível à nossa capacidade.

Qualquer tentativa de analogia que pensemos em fazer para aplicar a Deus, é sempre tacanha, pobre e temerária. Por isso mesmo, a revelação de Deus sempre é uma autorrevelação consciente, majestosa e objetiva. Deus na expressão de sua natureza gloriosa, traz beleza variada e harmoniosa à Criação.

As Escrituras não tratam a Deus como um ser que se confunde com a matéria (panteísmo)[36] nem como uma divindade ausente, distante do mundo (deísmo),[37] como normalmente ocorre com o pensamento pagão ao longo da história. Antes, nos mostram tal qual Ele se revela.

Bavinck sintetiza:

Todos os povos ou puxam Deus panteisticamente para baixo, na direção daquilo que é criado, ou o elevam deisticamente, colocando-o infinitamente acima da criatura. Em nenhum dos casos se chega a uma verdadeira comunhão, a uma aliança, a uma religião genuína. No entanto, a Escritura insiste em ambos: Deus é infinitamente grande e condescendentemente bom; Ele é soberano, mas também é Pai; Ele é Criador, mas também é Protótipo. Em uma palavra, Ele é o Deus da aliança.[38]

Por meio de Isaías, Deus faz registrar:

Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o coração dos contritos. (Is 57.15)

A Palavra de Deus nos ensina que Deus não pode estar limitado pelo universo, que é sua criação: Deus é infinito e, por isso, é imenso e eterno, transcendendo de forma perfeita todas as limitações espaciais e temporais – que são próprias da criatura, não do Criador. Entretanto, Deus está presente em todas as suas criaturas e em todos os lugares, sustentando toda a existência e realidade

Com isso não queremos dizer que Deus esteja presente no mesmo sentido em todas as suas criaturas. Deus está em todo ser de acordo com a natureza deles. Desse modo, afirmamos que Deus habita de uma forma no homem e de outra no mundo orgânico, de outro no mundo inorgânico, etc. O modo como Deus está em nós, seu povo, é diferente da forma como Ele habita nos incrédulos. Deus está presente agindo soberanamente numa interminável variedade de maneiras. Ele enche todo o universo, envolve com sua presença o céu e o inferno.[39]

Transcendência e imanência

Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, também afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção desta realidade por meio deste Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.

A Bíblia ensina estas duas verdades:

1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.

2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especial e qualitativamente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28. Calvino exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”.[40]

Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.

Quando voltamos ao livro de Gênesis, vemos em Adão o conceito de pecado, limitação, transitoriedade e, paradoxalmente, o desejo de ser igual a Deus; portanto, presunção e arrogância.

Quando contemplamos a cruz de Cristo,  vemos o Deus encarnado, o Senhor glorioso e o Servo sofredor, onde há plenitude de conhecimento e de sabedoria (Cl 2.3) que ultrapassam totalmente a nossa capacidade de compreensão.

Por maravilhosa graça, podemos então ter um verdadeiro conhecimento de Deus e da realidade. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de que há um mundo real e, que este mundo é acessível. Não enxergamos simplesmente miragens, antes, temos contado com a realidade que é autoevidente. Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam por questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo conhecer, e chegar a um grau bastante consistente de senso-comum.

Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, submeter as nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade. A ciência é transitória e, justamente é transitória por ser uma ciência humana, em construção e depuração.[41] No entanto, talvez falte a ela a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[42] Mas, deixemos para explorar esse ponto mais à frente.


[1]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 43.

[2]Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 38.

[3]Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 53.

[4] Ronald H. Nash, Cosmovisões em Conflito: escolhendo o Cristianismo em um mundo de ideias,  Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 27. Na ficção escrita por Comenius, o peregrino só saiu de uma visão desesperadora da vida, quando Deus o atrai  e muda os seus óculos. O anterior fora-lhe posto pelo Engano, tendo as lentes de vidro feitas pela Opinião e a armação feita de um chifre, denominado Costume. A sorte do peregrino foi que descobriu a possibilidade de enxergar por cima e por baixo das lentes, o que lhe proporcionava uma visão diferente. O novo óculos tinha como armação a Palavra de Deus e o Espírito como lentes. (J.A. Comenius, O Labirinto do Mundo e o Paraíso do Coração, Bragança Paulista, SP.: Editora Comenius, 2010, p. 22-23; 141-142). Para um estudo mais detalhado a respeito dos nossos pressupostos e como eles influenciam a leitura da realidade, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à Cosmovisão Reformada: um desafio a se viver responsavelmente a fé professada, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2017; Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.

[5] Veja-se: Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 162.

[6]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn  3.2-7), p. 186. “Satanás labora muito mais do que imaginamos para banir de nossas mentes, por todos os meios possíveis, a fé na sã doutrina; e visto que nem sempre é fácil fazer  isso através de um franco ataque à nossa fé, ele se arma contra nós secretamente e pelo uso de métodos indiretos e a fim de destruir a credibilidade de seu ensino, ele desperta suspeitas acerca da vocação dos santos mestres” (João Calvino, As Pastorais,  São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 1.11), p. 210).

[7] Herman Bavinck, Filosofia da Revelação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 129-130.

[8]“O axioma ontológico primário do cristão é o único Deus vivente, e seu axioma epistemológico primário é a revelação divina” (Carl F.H. Henry, O Resgate da Fé Cristã,  Brasília, DF.: Monergismo, 2014, p. 59). Vejam-se também: Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, v. 1, p. 31, E-book.  Posição 456 de 715; Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 36-39).

[9] Veja-se: John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 168, 175ss.

[10] “A verdade das criaturas, por exemplo, seria sem sentido sem a verdade de Deus, mas a verdade de Deus não depende do mundo que ele criou. Ele conhece todas as coisas por si mesmo, conhecendo sua natureza e seu plano eterno, e cria a verdade sobre o mundo real por meio de suas obras de criação e providência. Nosso conhecimento depende do dele (Sl 36.9), mas o dele não depende de nada, a não ser dele mesmo” (John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 455).

[11] J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.

[12] Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.

[13]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 607.

[14] Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.

[15] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 113.

[16]Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Princípios bíblicos de adoração cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[17] “A perda total de significado implícita no ateísmo é de mais para que muitos suportem. As pessoas precisam de alguns valores, alguns padrões, algumas maneiras para orientar suas vidas. Entre essas pessoas, aqueles que continuam a resistir à crença no verdadeiro Deus tornam-se inconsistentes quanto ao seu ateísmo, ou tornam-se idólatras. Se não querem o verdadeiro Deus, terão de procurar outro” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 150).

[18]John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, Phillipsburg, New Jersey: P&R Publishing, 2015, p. 7.

[19]Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 181,186ss.

[20] K. Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, I/1, p. 306.

[21] Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156. “O mistério é a força vital da dogmática” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 29).  “A teologia cristã sempre tem a ver com mistérios que ela conhece e com os quais fica maravilhada, mas não compreende, nem sonda” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 619).“Quanto mais compreendemos a verdade de Deus, mais somos chocados pelo mistério” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 32). Dentro de outro tema, escreveu Packer: “Seja como for, não devemos ficar surpresos ao encontrar mistérios dessa espécie na Palavra de Deus. Pois o Criador é incompreensível para as suas criaturas. Um Deus que pudesse ser exaustivamente compreendido por nós, cuja revelação sobre Si mesmo não nos apresentasse  qualquer mistério, seria um Deus segundo a imagem do homem e, portanto, um Deus imaginário, e nunca o Deus da Bíblia” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20).

[22] Ver: João Calvino, As Institutas, III.21.2; III.23.8.  Na edição de 1541, escrevera: “E que não achemos ruim submeter neste ponto o nosso entendimento à sabedoria de Deus, aos cuidados da qual Ele deixa muitos segredos. Porque é douta ignorância ignorar as coisas que não é lícito nem possível saber; o desejo de sabê-las revela uma espécie de raiva canina” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3 (III.8), p. 53-54). Semelhantemente, François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 647-648.

[23] Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 157, 159ss.

[24]Cf. Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, v. 1, p. 7, E-book.  Posição 99 de 715.

[25] Cf. Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 23.

[26] “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49).

[27]  João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 12.3), p. 373.

[28]C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979), p. 21.

[29] William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Jo 14.9) p. 657.

[30]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 25-26. “Deus se revelou mais abundantemente no nome ‘Pai, Filho e Espírito Santo’. A plenitude que, desde o princípio, estava no nome Elohim, foi gradualmente desenvolvida e tornou-se mais plena e manifestamente expressa no nome trinitário de Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 150).

[31] “A principal ênfase do cristianismo bíblico consiste na doutrina de que um Deus infinito e pessoal é a realidade final, o Criador de todas as outras coisas, e de que um indivíduo pode se aproximar do Deus santo com base na obra consumada de Cristo, e somente desse modo” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 272).

[32] Cf. Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 740-741; Gottfried Quell, ku/rioj, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 3, p. 1062-1063.

[33]Cf. A.H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 21.

[34] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98, 110.

[35] Veja-se: Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 10.

[36]Panteísmo [“Pan” (pa=n = tudo, todas as coisas) & “Theós” (qeo/j = Deus)], é a doutrina que ensina que não há nenhuma realidade transcendente e que tudo é imanente; por isso, Deus e o mundo formam uma unidade essencial, sendo, portanto, a mesma coisa, constituindo um todo indivisível; por isso a negação da transcendência de Deus visto que Ele se confunde com a própria matéria, sendo esta a própria manifestação de Deus.

A Bíblia não confunde Deus com a matéria; antes, afirma que Deus criou a matéria (Gn 1.1) e a sustenta com o seu poder (Cl 1.17; Hb 1.3). Esta distinção entre o Deus Criador e a criação é um ensinamento fundamental das Escrituras.

[37]Deísmo é uma denominação genérica das doutrinas filosófico-religiosas que surgiram em meados do século XVII, as quais, contrapondo-se ao “ateísmo”, afirmavam a existência de Deus; entretanto, negavam a Revelação Especial, os milagres e a Providência. Esse Deus é concebido preliminarmente como a causa motora do universo. Uma das ideias predominantes, era a de que um Deus transcendente criou o mundo dotando-o de leis próprias e retirou-se para o seu ócio celestial, deixando o mundo trabalhar conforme as leis predeterminadas. Uma figura comum ao deísmo do século XVIII era a do relógio de precisão que seria o equivalente ao universo que trabalha sozinho depois de se lhe dar corda. Neste caso, Deus seria uma espécie de relojoeiro distante, apenas observando a sua criação sem “intervir” em suas questões cotidianas. A conclusão chegada pelos deístas é a que as leis que regem o universo são imutáveis. O deísmo consequentemente atribui à Criação a capacidade de se sustentar e se governar por si mesma. Temos aqui um naturalismo autônomo.

Desta forma, Deus é um proprietário ausente, que não age diretamente sobre a Criação; a única relação existente entre o Criador e a Criação, dá-se por meio de suas leis deixadas, as quais regem o universo de forma determinista. Deus seria regente do universo “apenas de nome”. O deísmo não deixa de ser um ateísmo prático visto que Deus não é considerado de forma concreta na vida de seus adeptos. Deus sai do cenário real e concreto, mas, o destino e o acaso terminam por ser entronizados. (Para maiores detalhes sobre o panteísmo e o deísmo, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, O homem no teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 96-101).

[38]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 580.

[39] Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.16.3; Edward Leigh, A Treatise of Divinity,  London: Printed by E. Griffin for W. Lee, 1646, Cap. 4, p. 39; Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 1, p. 370.

[40] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.

[41] Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K.R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).

[42]Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21.  À frente: “A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar”  (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20).