Um blog do Ministério Fiel
O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 25)
A Trindade essencialmente sábia
Conforme já vimos, Platão (427-347 a.C.) e Sócrates (469-399 a.C.) contrastam a Filosofi/a com a Sofi/a: Esta que é a sabedoria perfeita, pertence somente a Deus. Os homens são apenas filo/sofoj, amantes da sabedoria.
Paulo suplica a Deus que conceda aos efésios Espírito de sabedoria: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria (sofi/a) e de revelação (a)poka/luyij) no pleno conhecimento (e)pi/gnwsij) dele” (Ef 1.17).
Paulo ora para que o Deus Pai, pelo Espírito que já nos selou, e o temos como penhor de nossa salvação (Ef 1.13-14), aja em nós poderosamente, nos concedendo sabedoria espiritual para podermos conhecer mais a Deus em nossa caminhada na vida cristã.
Estudemos um pouco mais sobre o conceito de sabedoria nas Escrituras.
Devemos primeiramente entender que a sabedoria pertence a Deus. Ela é um dos Atributos de Deus. Todo conhecimento e toda sabedoria fazem parte da natureza essencial de Deus e se revelam em seus atos, na Criação e em sua Palavra.[1] A digital de Deus está em toda parte. A Criação, a despeito da corrupção do pecado, testemunha a respeito de sua natureza e poder (Sl 8.1-9; 19.1-6).
As obras de Deus são admiráveis revelando aspectos de sua maravilhosa grandeza: “Não há entre os deuses semelhante a ti, Senhor; e nada existe que se compare às tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)” (Sl 86.8). “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh) são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (Sl 139.14).
O contemplar as obras de Deus proporciona a nós um deleite espiritual e uma adoração sincera:
Grandes são as obras (hf,[]m) (ma`aseh) do Senhor, consideradas por todos os que nelas se comprazem (Sl 111.2).
4 Pois me alegraste, Senhor, com os teus feitos; exultarei nas obras (hf,[]m) (ma`aseh) das tuas mãos. 5 Quão grandes, Senhor, são as tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Os teus pensamentos, que profundos! (Sl 92.4-5).
Na contemplação meditativa da Criação, podemos perceber aspectos da bondade de Deus que nos aliviam em nossas dores e limitações, nos concedendo a visão da harmoniosa variedade e beleza daquilo que criou. Nesta visão, somos conduzidos a nos admirar e a glorificar a Deus por sua manifestação de sabedoria, bondade e graça para conosco.
O salmista demonstra isso:
Que variedade, Senhor, nas tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas (Sl 104.24).
O Senhor é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh) (Sl 145.9).
Justo é o Senhor em todos os seus caminhos, benigno em todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh) (Sl 145.17).
Sempre é bom reafirmar que a Revelação de Deus não é uma não-revelação, um despiste, disfarce ou mesmo, algo inconsistente com Ele. Deus dá um testemunho idôneo de si mesmo. Somente Deus pode fazê-lo de forma perfeita, completa e compreensível às suas criaturas.[2]
O Deus que revela é o conteúdo da revelação. O Revelador é o Revelado. Deus se revela tal qual é, contudo, de forma que possamos entender. Deus é sábio em si mesmo, expressando isso em seus atos, Palavra e obras. “Toda a criação nada mais é do que a cortina visível por detrás da qual irradia a operação excelsa desse pensamento divino”, resume Kuyper (1837-1920).[3]
Paulo, de forma doxológica, conclui a carta aos Romanos: “Ao Deus único e sábio (sofo/j) seja dada glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém!” (Rm 16.27).
Notemos que esta glória atribuída a Deus deve ser dada por meio de Jesus Cristo, seu Filho amado, o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2.5), por meio de quem a sabedoria de Deus se manifestou de forma encarnada.
Por isso é que o culto que prestamos a Deus é por meio dos méritos de Cristo. Todo o nosso relacionamento com o Pai só é possível por meio de Jesus Cristo. Ele é o caminho de todas as bênçãos, sendo Ele mesmo a maior de todas (Rm 8.32).[4]
É assim que Paulo escrevera aos Efésios:
6 para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 7 no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, 8 que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria (sofi/a) e prudência (fro/nhsij = inteligência, bom senso, discernimento). (Ef 1.6-8).
Da mesma forma aos Colossenses:
1Gostaria, pois, que soubésseis quão grande luta venho mantendo por vós, pelos laodicenses e por quantos não me viram face a face; 2 para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, 3 em quem todos os tesouros da sabedoria (sofi/a) e do conhecimento (gnw=sij) estão ocultos (Cl 2.1-3).
Charnock (1628-1680) se vale de um argumento pertinente, demonstrando como a sabedoria de Deus, que rica em si mesma, se revelou também na maneira como escolheu seus servos – homens modestos –, e os inspirou para registrarem o que Ele desejava que fosse preservado dessa forma:
A sabedoria de Deus é vista nos instrumentos que ele empregou na publicação do Evangelho. Ele não empregou filósofos, mas pescadores; não usava artes conhecidas, mas infundia sabedoria e coragem. Esse tesouro foi colocado e preservado em vasos de barro, para que a sabedoria, bem como o poder de Deus, fossem magnificados. Quanto mais fracos são os meios que alcançam o fim, maior é a habilidade de seu condutor. Príncipes sábios escolhem homens de maior crédito, interessantes, sabedoria e habilidade para serem ministros de seus negócios e embaixadores de outros. Mas o que foram estes que Deus escolheu para uma obra tão grande, como publicar uma nova doutrina para o mundo? Qual era sua qualidade senão dizer, qual era sua autoridade sem interesse? Qual era a sua habilidade, sem partes eminentes para uma obra tão grande, mas que graça Divina de maneira especial os dotou? Não, qual era sua disposição para isso? tão enfadonho e pesado.(…) O nada e a fraqueza dos instrumentos manifestam que são conduzidos por um poder divino, e declaram que própria doutrina vem do céu. Quando vemos tais instrumentos fracos proclamando uma doutrina repugnante à carne e ao sangue, fazendo soar um Cristo crucificado em que se crê e em quem se confia, e declamando contra a religião e adoração sob as quais o Império Romano há muito floresceu; exortando-os ao desprezo do mundo, preparando para as aflições, negando-se a si mesmos e às suas próprias honras, pela esperança de uma recompensa invisível, coisas tão repugnantes à carne e ao sangue; e esses instrumentos concorrendo na mesma história, com uma harmonia admirável em todas as partes, e selando esta doutrina com seu sangue; podemos, com base em tudo isso, atribuir esta doutrina a um artifício humano, ou consagrar qualquer autor inferior a ela do que a sabedoria do céu? É a sabedoria de Deus que executa seus próprios desígnios nos métodos mais adequados à sua própria grandeza, e diferentes dos costumes e modos dos homens, que menos da humanidade e mais da divindade possam aparecer.[5]
A nulidade e loucura da sabedoria humana nas questões espirituais
Milosz (1911-2004), escritor russo, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1980), escreveu de forma provocante:
Religião, ópio do povo! Para aqueles que sofrem de dor, humilhação, doença e servidão, prometeu uma recompensa na vida após a morte. E agora estamos passando por uma transformação. Um verdadeiro ópio para as pessoas é a crença em nada após a morte – o grande consolo em pensar que não somos julgados por nossa traição, ganância, covardia e homicídio.[6]
Paulo, com toda a sua genialidade iluminada pelo Senhor, inclusive por causa disso, percebe as limitações próprias de nosso intelecto. O apóstolo, por isso mesmo, suplica pela sabedoria de Deus porque, nós, por nossa própria sabedoria jamais poderemos compreender salvadoramente o que Deus nos tem revelado. E mais: se pudéssemos por nós mesmos fazê-lo, não haveria graça, mas, mérito humano.[7] Assim, não haveria por que louvar o Deus da graça que a derramou abundantemente sobre nós (Ef 1.5-8). A grandeza estaria no homem e em sua capacidade de bem conduzir a sua razão. Aliás, este seria a concretização do sonho sempre acalentado pelo homem desde o Paraíso, até os dias de hoje.
Como escreve Bavinck.
As direções nas quais o nosso pensamento pode se dirigir não são tão numerosas quanto supomos ou imaginamos. Em nossos pensamentos e ações, somos todos determinados pela peculiaridade de nossa natureza humana, e também cada indivíduo por seu próprio passado e presente, pelo seu caráter e ambiente. E não é raro que aqueles que parecem liderar os outros são, antes, liderados por eles.[8]
Por isso, como sabemos, a razão humana, por si só, não assistida pela graça, não pode chegar às verdades espirituais.[9] Pode, pela graça comum de Deus chegar a informações, estabelecer conexões e encontrar algum sentido para a vida em sua estreiteza espaço-temporal. Porém, não consegue passar disso, considerando inclusive, a sua falta de elementos que confiram sentido à existência.
O fato, portanto, é que o Evangelho permaneceria oculto a todos nós se Deus não o manifestasse e não nos concedesse o Espírito de sabedoria para entendê-lo.[10] Receber a mensagem do Evangelho como procedente de Deus é graça.
É por isso que a pregação de Paulo a judeus e gentios não poderia ser outra do que “a Cristo, poder de Deus e sabedoria (sofi/a) de Deus” (1Co 1.24). (Do mesmo modo: 1Co 1.30).
A sabedoria do homem sem Deus, em seus devaneios autônomos, o tornou louco, afetando todos os domínios do seu coração, pretendendo passar por sábio autônomo,[11] e autossuficiente,[12] rejeitou a Deus e a sua revelação, tornando-se enlouquecidamente escravo de toda sorte de paixões idólatras. Paulo escreve sobre isso aos Romanos:
18 A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; 19 porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. 20 Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21 porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22 Inculcando-se por sábios (sofo/j), tornaram-se loucos (mwrai/nw) 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis (Rm 1.18-23).
A idolatria torna os homens cativos de uma forma viciada de pensar. O produto de nossos raciocínios torna-se nulo em sua própria elaboração. As evidências da revelação são sempre ocultadas em seus corações dominados por uma forma rotineira de pensar e determinantemente horizontal, tendo como fim os seus interesses (Rm 1.19-21).
Schaeffer (1912-1984) comenta:
Quando a Escritura fala do homem sendo deste jeito tolo, não significa que ele é apenas religiosamente tolo. Antes, significa que ele aceitou uma posição que é intelectualmente tola, não somente com respeito ao que a Bíblia diz, mas também em relação àquilo que existe – o universo e sua forma, e a humanidade do homem. Ao se afastar de Deus e da verdade que ele deu, o homem ficou tolamente tolo em relação ao que o homem é e ao que o universo é. Ele é deixado em uma posição com a qual ele não consegue viver, e ele é pego numa multidão de tensões intelectuais e pessoais.[13]
Ao que parece, a idolatria, já como resultado da obscuridade espiritual, elimina boa parte de nossa sensibilidade espiritual, brutalizando-nos, amortecendo certas faculdades nossas. Por isso, é que a idolatria nunca vem sozinha, ela sempre está acompanhada de outras práticas irracionais e pecaminosas.
O salmista comparando a grandeza de Deus com os ídolos feitos pelos homens, arremata: “Como eles se tornam os que os fazem, e todos os que neles confiam” (Sl 135.18). Os homens que se projetam em seus ídolos não têm alternativa possível, senão tornarem-se semelhantes à sua imagem que adoram, afinal, seus ídolos, nada lhes propõem, que já não seja da natureza de seus criadores.
Deste modo, por uma consequência lógica, a idolatria estando já bem socializada em nossos corações, nos conduz cada vez mais a uma bestialização de nossos corações (centro vital; o nosso eu essencial) se evidenciando em nossas construções intelectuais e práxis.
Contudo, não pensemos que essa bestialidade se torne autoevidentes. Não de um modo tão simplista. Ela virá, com suas variações, com toques de requinte e discursos convalidadores aparentemente óbvios aos nossos ouvidos. Ao longo da história as ideologias têm sido construídas assim. E, se elas dispuserem de um aparelhamento ideológico compatível, como meios de comunicação de massa e formadores de opinião, cada vez mais elas se tornarão bem-sucedidas na consecução de seus projetos.
Aspectos práticos dessa concepção, encontramos também em Oséias, quando relembrando o pecado do povo de Israel no deserto, diz: “Mas eles foram para Baal-Peor, e se consagraram à vergonhosa idolatria, e se tornaram abomináveis como aquilo que amaram” (Os 9.10). A idolatria apenas forneceu as bases justificadoras da prática que desejavam.
Como a idolatria é a construção de um deus que se harmonize com seus desejos, nada mais natural de que esta construção humana termine por se tornar no seu modelo de vida e comportamento. Há aqui um círculo vicioso: Crio meus deuses com características semelhantes às minhas a fim de que ele se torne um modelo para que eu continue sendo o que sou, reforçando assim a minha prática.
Vemos aqui a pertinência da crítica de Xenófanes e Heráclito, já estudada, ao hábito de forjar seus deuses conforme os seus próprios vícios.
A idolatria traz um desequilíbrio no cerne do pensamento humano, se manifestando em todas outras áreas de sua vida, ainda que nem sempre de modo imediatamente perceptível: a idolatria tende a ser desagregadora do caráter ainda que possa se esconder sob a capa da compreensão tolerante. A idolatria é uma doença espiritual resultante da carência de Deus e da procura equivocada do sagrado.
É por isso que a sabedoria deste mundo é nula no que diz respeito ao conhecimento das coisas espirituais. Estamos totalmente cegos. A nossa percepção não alcança nada além do mundo e de seus valores terrenos.[14] “Os homens são estúpidos e jamais entendem coisa alguma pertencente à sua salvação sem que Deus opere neles”, conclui Calvino.[15]
Aos arrogantes coríntios, que com uma suposta sabedoria inexistente queriam limitar Cristo aos seus modestos e frágeis cânones intelectuais, o apóstolo indaga:
20Onde está o sábio (sofo/j)? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca (mwrai/nw) a sabedoria (sofi/a) do mundo? 21Visto como, na sabedoria (sofi/a) de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria (sofi/a), aprouve (eu)doke/w)[16] a Deus salvar os que creem pela loucura (mwri/a) da pregação (1Co 1.20-21).
A ideia da palavra traduzida por “loucura’, é de algo “imbecil”, “tolo”, “insensato”. Na literatura clássica está relacionada à falta de conhecimento e discernimento. Dentro do aspecto da insensatez, esta figura é aplicada ao sal que, se se tornar “insípido” (mwrai/nw) (Mt 5.13; Lc 14.34-35) para nada mais serve.
No emprego feito por Paulo, ele demonstra que a mensagem da cruz de Cristo foi alcunhada depreciativamente de “loucura” justamente pela sua falta de sentido intelectual para aqueles que querem avaliar o seu conteúdo dentro de seus pressupostos viciados, imanentes e, por isso mesmo, mutilados.
Em síntese, o Evangelho soa como algo “simplório”. Paulo diz que Deus tornou “louca” (mwrai/nw) a sabedoria deste mundo (1Co 1.20). Por sua vez, os ímpios se considerando sábios, “tornaram-se loucos” (mwrai/nw) (Rm 1.22/Jr 10.14 (“estúpido” [mwrai/nw]), em sua idolatria, recebendo o justo castigo de Deus (Rm 1.23-27).
Deste modo, a sabedoria de Deus será sempre loucura (mwri/a) para os “sábios” deste mundo que querem simplesmente adequar o Evangelho aos seus pressupostos (1Co 1.18,23; 2.14). Dentro desta perspectiva, Deus escolheu então as “cousas loucas (mwro/j) do mundo” (1Co 1.27). Em outras palavras, Deus deliberou em sua sabedoria que a sabedoria humana não seria o caminho para conhecê-lo.[17]
A sabedoria deste mundo é loucura (mwri/a) diante de Deus (1Co 3.19). Deus sabe que os pensamentos destes “sábios” são “vãos” (= “nulos”, “fúteis” [ma/taioj] *At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18)(1Co 3.20).
Por outro lado, os que creem na loucura (mwri/a) da pregação serão salvos (1Co 1.21). A loucura (mwro/j) de Deus é mais sábia do que a sabedoria deste mundo (1Co 1.25).
Mas, qual a diferença entre a sabedoria de Deus e a sabedoria do mundo? A diferença fundamental, é que a sabedoria deste mundo tenta anular a cruz de Cristo, buscando um caminho mais de acordo com os seus pressupostos, realçando a sua capacidade e autonomia, buscando em si mesmos a solução de seus problemas e, descobrem tristemente, que seus reservatórios estão vazios de soluções concretas.[18]
A sabedoria de Deus, por sua vez, mostra na cruz, o pecado humano e a sua total incapacidade de salvar-se, estando totalmente perdido, realçando a graça redentora de Deus (Rm 3.34-26; 5.6-11). A mensagem da cruz reflete em uma só imagem, a majestade de Deus em sua justiça e misericórdia perfeitas na salvação do seu povo. Isso é totalmente incompreensível para o homem natural.
Piper resume:
Em outras palavras, a cruz ofende a sabedoria humana porque ela humilha o homem e exalta a imerecida graça de Deus.[19] (…) O âmago da sabedoria de Deus é a paixão de Deus por demonstrar sua graça em Cristo para o gozo eterno daqueles que creem. Visto que todos nós somos pecadores indignos, a cruz é central para essa sabedoria. Sem a cruz, não poderíamos ter essa sabedoria. (…) A essência da sabedoria de Deus é exaltar a glória de sua graça manifestada em Cristo crucificado.[20]
Portanto, se quisermos nos tornar sábios para Deus, tornemo-nos loucos (mwro/j) para as cousas deste mundo (1Co 3.18).[21]
De certa forma, somos os loucos de Cristo (1Co 4.10). Por sua vez, ilustrando que a “loucura” ou “insensatez” não são boas em si mesmas, Paulo faz recomendações práticas para que rejeitemos as questões “sábias” deste mundo que consistem em discussões e questões “insensatas” que produzem contendas, não tendo utilidade (2Tm 2.23; Tt 3.9 [“fúteis” (ma/taioj]). Portanto, o Evangelho não tem a “loucura” e “insensatez” como virtudes (Mt 23.16-17; 25.1-13). A verdadeira sabedoria consiste em ouvir a Palavra de Deus e praticá-la. Loucura é desprezá-la (Mt 7.24-27).
A sabedoria deste mundo tenta excluir Deus, por isso a loucura desta suposta sabedoria que astutamente torna a realidade apenas material, ou, quando muito, vê a vida como sendo dominada por alguma força cósmica impessoal. Dentro desta perspectiva secular-mística, a mensagem do Evangelho permanece como loucura. Ela é inacessível à compreensão puramente humana e limitada.
Portanto, o argumento de Paulo quanto à proclamação do Evangelho:
….a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: Ele apanha os sábios (sofo/j) na própria astúcia deles (1Co 3.19).
….expomos sabedoria (sofi/a) entre os experimentados; não, porém, a sabedoria (sofi/a) deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada (katarge/w) (algo que desvanece, se dilui) (1Co 2.6).
Lloyd-Jones (1899-1981) colocou esta questão nestes termos:
Se vocês não partirem deste elemento de mistério e de encantamento, nunca irão crer no Evangelho. “Não julgues o Senhor pela débil razão.” Reconheça a sua finitude pessoal, a sua pecaminosidade, a sua incapacidade total para entender a mente do Deus eterno.[22]
Assim, sendo, o cristão deve aceitar este paradoxo: tornar-se louco diante dos valores deste século para entender a verdadeira e definitiva sabedoria:
18 Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem por sábio neste século, faça-se estulto para se tornar sábio. 19 Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: Ele apanha os sábios na própria astúcia deles. 20 E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são pensamentos vãos. (1Co 3.18-20).
Por isso a nossa fé não pode se apoiar em sabedoria humana, mas, no poder de Deus. Paulo sabia bem deste risco, certamente tão tentador para muitos. Relembra então aos coríntios, como foi a sua chegada entre eles:
Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria (sofi/a). 2Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado. 3 E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. 4 A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria (sofi/a), mas em demonstração do Espírito e de poder, 5 para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria (sofi/a) humana, e sim no poder de Deus. (1Co 2.1-5/2Co 1.12).[23]
Continua:
Mas falamos a sabedoria (sofi/a) de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória (1Co 2.7).
Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria (sofi/a) humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. (1Co 2.13).
A pregação entre os colossenses não foi diferente:
24 Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja; 25 da qual me tornei ministro de acordo com a dispensação da parte de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para dar pleno cumprimento à palavra de Deus: 26 o mistério que estivera oculto dos séculos e das gerações; agora, todavia, se manifestou aos seus santos; 27 aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória; 28 o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria (sofi/a), a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; 29 para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim. (Cl 1.24-29).
Do mesmo modo entre os efésios:
8A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo 9 e manifestar qual seja a dispensação do mistério, desde os séculos, oculto em Deus, que criou todas as coisas, 10 para que, pela igreja, a multiforme sabedoria (sofi/a) de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais, 11 segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor, 12 pelo qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele (Ef 3.8-12).
[1]“Que variedade, SENHOR, nas tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas” (Sl 104.24).
[2]“Pois, como haja a mente humana, que ainda não pode estatuir ao certo de que natureza seja a massa do sol, que entretanto se vê diariamente com os olhos, de reduzir à sua parca medida a imensurável essência de Deus? Muito pelo contrário, como haja de, por sua própria operação, penetrar até a substância de Deus, a fim de perscrutá-la, ela que não alcança nem ao menos a sua própria? Por cuja razão, de bom grado deixemos a Deus o conhecimento de si mesmo, pois, além de tudo, como o diz Hilário, ele próprio, que não foi conhecido, a não ser por si mesmo, é de si mesmo a única testemunha idônea. Ora, deixaremos com ele o que lhe compete se o concebermos tal como ele se nos manifesta; e só poderemos inteirar-nos disto por intermédio de sua Palavra” (João Calvino, As Institutas, (2006), I.13.21).
[3]Abraham Kuyper, Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 38.
[4]“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32).
[5]Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 1, p. 578-579.
[6]Czeslaw Milosz, Diskreter Charme des Nihilismus. In: New York Times Revies of Books, 19 de novembro de 1998 (https://www.nybooks.com/articles/1998/11/19/discreet-charm-of-nihilism/) (Consulta feita em 22.04.2021).
[7]“Se todo homem fosse capaz de crer e ter fé de moto próprio, ou a pudesse obter por algum poder de si mesmo, o louvor disso não teria que ser dado a Deus” (João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 132).
[8]Herman Bavinck, A Filosofia da Revelação (Locais do Kindle 839-843). Edições Calcedônia
[9]Vejam-se: John MacArthur, Deus: Face a face com sua majestade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 67; João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.5), p. 38.
[10] “O Evangelho só pode ser entendido por meio da fé – não pela razão, nem pela perspicácia do entendimento humano, porque de outro modo ele seria algo oculto de nós” (João Calvino, Colossenses: In: Gálatas – Efésios – Filipenses – Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, (Cl 2.1-5), p. 531). “Crer no Evangelho nada mais é do que consentir com as verdades que Deus revelou” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3. 32), p. 147).
[11]“A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o homem como a medida de todas as coisas” (R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 33).
[12]“O apóstolo está se referindo à sabedoria do mundo [1Co 1.20-21; 3.18-19], independente de Deus e de sua revelação. É o tipo de sabedoria que deixa Deus e sua revelação de fora e, com isso, distorce inteiramente o conceito de realidade” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 255).
[13]Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
[14] Veja-se: João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 153ss.
[15]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 154.
[16]Tanto o verbo (eu)doke/w) quanto o substantivo (eu)doki/a) enfatizam aquilo ou aquele que é prazeroso, considerando a essência da coisa ou o que se tem em vista. Assim, vemos que Deus Se compraz em Jesus Cristo, o Filho amado (Mt 3.17; 12.18; 17.5; 2Pe 1.17), em quem reside, conforme a vontade de Deus, toda a plenitude da divindade (Cl 1.19/2.9). Deus tem prazer em revelar a Sua vontade aos “pequeninos” (Mt 11.25-26; Lc 10.21), concedendo o Seu Reino (Lc 12.32). Ele nos predestinou para adoção conforme o seu “beneplácito” (eu)doki/a)( Ef 1.5,9), assim como vocaciona os Seus servos conforme Sua vontade (Gl 1.15-16). Deus tem prazer em salvar o seu povo por meio da pregação da Palavra (1Co 1.21). Deus opera em nós conforme a Sua liberdade soberana e prazerosa (Fp 2.13). No entanto, estas palavras não são utilizadas somente para Deus, elas também descrevem atitudes e aspirações humanas, como o desejo de Paulo pela salvação dos judeus (Rm 10.1); a sua oração em favor dos tessalonicenses (2Ts 1.11); a voluntariedade prazerosa da Igreja em socorrer os irmãos necessitados (Rm 15.26-27); o desejo de deixar o corpo para estar com Cristo (2Co 5.8); a abnegação de Paulo em prol dos tessalonicenses, compartilhando a sua própria vida (1Ts 2.8 “estávamos prontos” (eu)doke/w)/1Ts 3.1-5: Verso 1: “pareceu-nos bem (eu)doke/w) ficar sozinhos em Atenas”); sofrer pelo testemunho de Cristo, a quem amava (2Co 12.10). O Evangelho deve ser pregado: “de boa vontade” (eu)doki/a) (Fp 1.15).
[17] Veja-se: John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 205.
[18]“Em sua insanidade arrogante, os homens afirmam que são mais sábios do que Deus, ao asseverarem seu próprio pensamento e abordagem quanto à vida. E aqueles que os ouvem procuram, em grande número, as cisternas rotas da filosofia humanista deles, em busca de respostas para a vida. Mas tudo que descobrem são reservatórios vazios que escarnecem de sua sede” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 52).
[19] “A cruz se levanta como testemunho da infinita dignidade de Deus e o infinito ultraje do pecado” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 31).
[20]John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 209,210.
[21] “Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem por sábio (sofo/j) neste século, faça-se estulto (mwro/j) para se tornar sábio (sofo/j)” (1Co 3.18).
[22] D.M. Lloyd-Jones, Cristianismo Autêntico: Sermões nos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006, v. 4, p. 304.
[23] “Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que, com santidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria (sofi/a) humana, mas, na graça divina, temos vivido no mundo e mais especialmente para convosco” (2Co 1.12).